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26 junho, 2019

Uma fábula sobre dias incertos




Nestes dias incertos pelos quais passamos, a arte, o riso e a amizade, constituem trincheiras importantes para resistir e manter a esperança e a lucidez. Dito isso, abro espaço no blog para publicar "Uma fábula sobre dias incertos", do jornalista e amigo Augusto do Nascimento. Qualquer semelhança com o que vivemos não é mera coincidência. Oxalá no final, a vida imite a arte.



Uma fábula sobre dias incertos


Após anos se movimentando e alimentando em subterrâneos obscuros, a família de vermes sanguinários finalmente alcançou a superfície do jardim. No entanto, o pai verme e seus filhos, pouco afeitos à claridade e calor dos dias ensolarados, ou à suavidade da noite, não conseguiram se adaptar bem ao mundo.
Na verdade, as outras manifestações de vida lhes eram estranhas, pouco ou nada aceitáveis. Para eles, conviver com as diferenças era fora de cogitação. O canto dos pássaros, o desabrochar das flores, a leveza da brisa, o brilho das estrelas, como tudo isso era insuportável! Seu intento, antes de cumprir a sina de retornar às profundezas de onde vieram, era destruir o que não podiam tolerar. Dominar, e depois destruir.
Para lograr êxito, convocaram seus pares, vermes até então emudecidos na lama e nas fezes. Aliaram-se a outras espécies, também sedentas de poder e igualmente intolerantes diante do que a natureza oferecia de mais precioso, saudosas de tempos de outrora, quando tinham sido reinantes ou dizimado aqueles que não lhes apeteciam. Ratos pestilentos e cheios de artimanhas articulavam entre si alianças impolutas; amebas livres espalhavam-se em todos os cantos com uma cantilena repetitiva, a bradar que traziam a redenção e dias gloriosos; vírus letais silenciosamente disseminavam males e ceifavam vidas. Em apoio ao ardil, abutres altivos com longas asas negras orientavam julgamentos arbitrários e condenavam quem lhes servisse de obstáculo.
Por um instante, o jardim se sentiu ameaçado, sem entender como aqueles seres tinham se sublevado e angariado expressão para impor tantas pretensões iníquas. Como suas vociferações carregadas de ódio tinham desequilibrado a harmonia tênue (ainda que incompleta, pois a natureza tem o feitio de sempre se renovar). Com o triunfo da família de vermes, as noites – sem lua – pareceram mais longas, as folhas secaram antes do inverno, as fontes de água deixaram de correr e espalhar vida. A própria beleza tinha sido saqueada.
Um dia, fauna, flora e o reino mineral se deram conta de que tinham força. Mais força ainda do que supunham. Surpreendidos pela reação dos que queriam resgatar a florescência natural, os saqueadores do jardim tentaram uma vez mais impor seus esgares, na vã ilusão de que conseguiriam voltar a vencer pelo grito e pelo esconjuro. Não bastasse o ato de resistência coletiva, os velhacos aliados, em covardia habitual, afastaram-se do inepto pai verme e de seus filhos, buscando refúgio em recônditos sombrios que pudessem oferecer alguma segurança.
E os parasitas sanguinários, depois de pisoteados, voltaram rastejantes à frieza dos subterrâneos, de onde nunca deveriam ter saído.




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