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23 julho, 2020

O que será o amanhã? A economia e a vida pós-COVID-19 (Parte IV)

Planeta terra partido

Em mais um texto da série “o coronavírus e a economia”, o professor Aécio Oliveira (UFC) continua a reflexão sobre como evitar a destruição do planeta e a nossa própria autodestruição enquanto espécie. Ele afirma “O fato de estarmos vivenciando um momento histórico inédito de múltiplas crises – econômica, política, social e sanitária – não deve nos inibir de pensarmos possibilidades e menos ainda vislumbrar outras formas societárias para a humanidade.”. E indaga"  A nova era – antropoceno ou capitaloceno – sinaliza para mais pandemias e desastres climáticos. Ou sinaliza para a extinção da raça humana?"  Confira.

O hoje

Quais as verdadeiras causas das múltiplas crises hoje vivenciadas? A economia de há muito não funciona como preceitua a chamada ciência econômica, o Estado dedica-se apenas a intervir na economia para beneficiar corporações e credores da dívida pública, a democracia representativa está em cheque e interessa apenas à minoria, o aparelho da repressão institucional se amplia no sentido de estabelecer uma espécie de ditadura democrática... Essas facetas são expressões concretas da “contradição em processo” que é o sistema do capital, um sistema que gera crises permanentes e recorrentes para não serem resolvidas. Mas, a que objetivos atendem essas crises permanentes e recorrentes?


Primeiro, evitar que se pensem alternativas inclusivas que melhorem as condições de vida de todas as pessoas. As crises desviam a atenção do problema da elevada concentração de riqueza, ajudando assim a legitimar as desigualdades. Em segundo lugar, impor medidas para combatê-las que incluem a eliminação de direitos individuais e sociais. A demolição do Estado de bem-estar social é justificada pela necessidade da redução de gastos públicos em geral: a educação, a saúde e a seguridade social são as primeiras ‘vítimas’. São as chamadas medidas de ajuste para garantir a remuneração dos credores das dívidas públicas. Em terceiro, mas não em último lugar, atender à desregulamentação de proteção dos ecossistemas.

Ao mesmo tempo, a normalidade* das sociedades modernas introjetam nas pessoas um estranho sentimento de segurança. Mesmo quando alguma insegurança se insurge, as mídias acionam mecanismos para que seja minimizada, promovendo a venda de ‘produtos de segurança’: planos privados de saúde, apólices de seguros de vida, do carro, da residência; serviços de empresas de segurança, terapias psicológicas, academias de ginástica... Logo que se instala um surto viral, desfaz-se essa quimera e desmorona-se a segurança. Os mecanismos criados pelas mídias perdem sua eficácia e se restringem a lembretes do tipo: <<anuncie na crise, senão a crise fará com que sua marca seja esquecida>>.


O novo coronavírus derrubou a economia logo no primeiro tempo e desnudou o neoliberalismo praticado nos últimos quarenta anos. A pandemia agravou a situação de crise da economia global, desvelou sua incapacidade de oferecer melhores condições de vida à população mundial e mostrou as fragilidades dos serviços públicos de saúde para seu enfrentamento em quase todos os países.


A atual pandemia tem a ‘virtude’ de introduzir mudanças inusitadas no comportamento das pessoas. O isolamento social (#FiqueEmCasa) possibilita tempo para alguma reflexão, para ler um livro e passar mais tempo com os familiares. Possibilita consumir menos e conter o vício de passar uma parte do tempo de vida em shoppings, olhando para o que está à venda, e lembra que coisas importantes podem ser obtidas por outros meios que não pela compra. Também abala a ideia conservadora de que não há alternativa ao modo de vida (imposto) das sociedades modernas. Mesmo tendo sido excluídas, as alternativas acabam emergindo no cenário pelas ‘portas dos fundos’, abertas pelas crises econômica, política e sanitária, ou pelas ‘portas’ abertas pelos desastres ambientais ou pelos colapsos financeiros. As alternativas emergem pelas vias do pior possível.


Sabe-se também que a pandemia (todo o povo) não é ‘democrática’. Mesmo assim, a etimologia da palavra sugere que todas as pessoas estão vulneráveis. Contraditoriamente, ser socialmente solidário é estar socialmente isolado. E quem não tiver condições de vida para tal, se vê com elevada probabilidade de ser ‘sorteado’ e fazer parte da fila por atendimento médico-hospitalar.


Uma parte significativa da economia foi obrigada a parar em todos os países. As consequências negativas recaíram principalmente sobre aqueles e aquelas que vivem da venda de sua força de trabalho ou de algum negócio que funciona como fonte de renda. Mas, visivelmente, diminuiu a poluição da atmosférica e da água de superfície. Na ausência do homem, os canais aquáticos de Veneza voltaram a ser frequentados por outras espécies; as tartaruga voltam a se ‘banhar’ na Baía de Guanabara; as emissões de GEE diminuíram... Parece que o coronavírus sinaliza que a única via para evitar o colapso ecológico global é a destruição do modo de produção e de vida das sociedades modernas, junto com destruição massiva de vidas humanas.

China e Cuba, por exemplo, acionaram métodos de vigilância e controle da pandemia bastante rigorosos. As medidas foram eficazes. Outros países, mais preocupados com a economia do que com a vida, se apressaram em liberar as atividades econômicas. Os resultados não foram melhores.

Uma pandemia com essa dimensão não cria, mas sim torna visível as ‘sombras’ já existentes. Por exemplo, a extrema vulnerabilidade ao vírus de milhões de refugiados e imigrantes detidos nos campos de internamento. Na Grécia há mais de 38.000 migrantes em espaços para pouco mais de 6.000 pessoas. Os internados não podem manter isolamento social. O mesmo ocorre nas favelas e periferias das grandes cidades brasileiras e com milhões (ou bilhões) que compõem a base da pirâmide das desigualdades sociais.

O coronavírus alterou profundamente o modo de vida das sociedades modernas. Instaurou momentos atípicos que certamente têm ajudado muitos de nós a exercitar outras reflexões, agora fora da zona de conforto a que estávamos acostumados antes da pandemia. Pouquíssimos das atuais gerações vivenciaram uma situação de confinamento semelhante. Agora temos a chance de refletir, pesquisar e discutir sobre como o mundo está, e como poderá ficar no pós Covid-19.

O fato de estarmos vivenciando um momento histórico inédito de múltiplas crises – econômica, política, social e sanitária – não deve nos inibir de pensarmos possibilidades e menos ainda vislumbrar outras formas societárias para a humanidade. Obviamente, possibilidades que sejam pensadas como processos que considerem as relações vitais entre Natureza, sociedade e economia. Alguns pontos podem ser sugeridos para reflexão. As causas da pandemia, os efeitos diferenciados sobre a sociedade, a segurança alimentar e a capacidade de atendimento dos sistemas de saúde, os impactos econômicos e a reorientação da economia são alguns pontos dentre muitos outros.

No contexto de profundas desigualdades que envolvem a maioria dos países, as consequências sempre recaem sobre os segmentos sociais mais vulneráveis que ocupam a base da pirâmide social. O novo coronavírus desnudou essas desigualdades, mesmo nos países com renda per capita elevada, e mais ainda naqueles que alimentam a ilusão de que chegarão ao paraíso do chamado “primeiro mundo”.

Mesmo assim, o debate mais sério tem sido evitado. O crescimento econômico ilimitado continua sendo a pauta, embora seja incompatível à vida a longo prazo. E que, para atender essa pauta, a maioria da sociedade é tratada como coisas, ou na melhor, se vê coagida à condição de servos da produção, do comércio e dos serviços para que tenham acesso aos meios de vida biológicos e sociais. Em geral, servos e senhores da modernidade vivem o hoje como se não houvesse o amanhã. Reproduzem um sociometabolismo que consome organismos humanos como um “fator da produção” qualquer, descartável, para o enriquecimento material de poucos.

Há uma pauta volumosa de interesse geral que envolve questões relacionadas ao neoliberalismo, à mercantilização da vida, às cadeias produtivas mundiais das mercadorias, à precarização do trabalho e das condições de vida de muitos. Agora, com a pandemia, as questões que falam da intensificação da exploração, como o ‘retorno’ do “trabalho em domicílio” do século XIX com a roupagem das TIC. Outras no mesmo nível de importância, relacionadas às economias e tecnologias alternativas, o combate às discriminações de gênero e raça e das minorias, ao lado da assistência e cuidados pessoais. São pautas que têm ganho muita visibilidade nesses tempos e que certamente alcançarão maior expressão no pós pandemia.

A proteção econômica do Estado – ajuda emergencial no Brasil, ou renda básica em outros países – daqueles e daquelas que perderam suas fontes de renda certamente não ocorreria dentro da normalidade ultraliberal. O choque causado pela pandemia poderá trazer alguma mudança de comportamento individual e social, caso melhore a percepção de muitos do que seja essencial. Talvez se abram janelas para que se perceba se as coisas voltarão à normalidade anterior ou se outra sociabilidade começará a se esboçar. Talvez as práticas dos gestores públicos e o poder exercido sobre a sociedade não sejam as mesmas nem o mesmo. A realidade quando ‘fala’ contribui para ampliar a compreensão de que, por exemplo, o novo coronavírus e a nuvem de gafanhotos que invade a América do Sul resultem das agressões feitas aos habitats pelo avanço da transformação da Natureza em mercadoria para fazer crescer a economia. A compreensão de que a destruição da biodiversidade provoca a eliminação de hospedeiros e de predadores.

O fato é que devemos estar mais conscientes ainda de que esses debates já estão postos e que definirão a agenda de discussões dos próximos anos, junto com a intensificação da retomada das pautas da mudança climática.

Com ou sem pandemia, após décadas de agressões à Natureza, as economias das sociedades modernas – de mercado ou de comando central – apresentam oscilações em suas trajetórias, mesmo que se perceba uma tendência geral de expansão. Esta tendência cíclica é determinada por leis econômicas que organizam a estrutura e o funcionamento da economia moderna. A “anarquia da produção”, que decorre de decisões orientadas por sinais de mercado e que são tomadas livre e isoladamente pelos agentes econômicos. A elevação da “composição técnico-orgânica do capital”, que possibilita a substituição do homem pela máquina. As inovações tecnológicas sem fim, que simplificam o trabalho e desvalorizam o trabalhador e sua formação, e que também desqualificam as áreas do conhecimento do campo das humanas. E por último, pela imposição da lei da produtividade crescente para reduzir custos e mais bem preparar para os embates da livre concorrência entre as empresas e as corporações.

Essas são as leis econômicas que caracterizam a normalidade da economia das sociedades modernas e que desencadeiam a “tendência decrescente da taxa de lucro” sobre o capital investido. Por isso é que, desde os anos de 1980, a esfera financeira ganha a condição de destino especial para um enorme volume de excedentes gerados pelas empresas que não encontram alternativas na economia real. Na esfera financeira não há limites para a expansão do dinheiro.

Assim, as crises econômicas tornam-se a regra e a perda de confiança na economia monetária é equivocadamente identificada como sua causa. A solidez do sistema financeiro-bancário se desmanchar no ar para que as causas reais permaneçam intocadas. A frustração do crescimento econômico abala a convivência entre a democracia representativa e a economia. Por essa via, insinua-se o domínio oligárquico sobre a sociedade e o enfraquecimento da esfera pública pela corrupção entranhada das estruturas institucionais e pelas pressões advindas da competição internacional. As sociedades modernas, portanto, demonstram sinais patológicos para os quais não há cura. Como resultado, agravam-se as desigualdades sociais e se ampliam as agressões à Natureza. A instabilidade social e política torna-se a regra.

Vários caminhos estão disponíveis para superar esse cenário dantesco. Mas, de alguma maneira todos esbarram nas estruturas ditas democráticas das sociedades modernas. Quando se trata de propor tecnologias sociais que minimizam os efeitos entrópicos de algum processo econômico, as pessoas mais influentes vociferam com justificativas relacionadas às economias de escala, à eficiência, à competitividade internacional. Fazer uma crítica às novas tecnologias, em virtude de seus efeitos negativos, nem pensar. Ninguém pode parar o progresso.

A realidade, no entanto, demonstra que as tecnologias terão que ser repensadas, pois as inovações tornam os processos econômicos cada vez mais ineficientes. Ao mesmo tempo, degradam matéria; contaminam o solo e a água, poluem a atmosfera e dissipam energia, em escala ampliada. Elas contribuem para uma crescente quantidade de resíduos que afetam a capacidade de suporte dos ecossistemas. O consumo desmesurado dos ecossistemas e o descarte de material humano é sua face mais cruel.

Conforme Michael Huesemann e Joyce Huesemann, em TEHNO-FIX (Capítulo 10): Contudo, as tecnologias são verdadeiros imperativos; não podem ser questionadas. Qualquer um que aceite o imperativo tecnológico para orientar suas ações desistiu, de fato, de qualquer consideração ética em sua tomada de decisão. Em vez de considerar, cuidadosamente, se uma nova tecnologia, quando completamente desenvolvida e implementada em larga escala, é útil ou inútil, construtiva ou destrutiva, inofensivo ou prejudicial, humana ou desumana, certa ou errada, boa ou má, a pessoa que acredita no imperativo tecnológico endossará e disseminará as novas tecnologias simplesmente porque elas são novas. [Tradução livre]

máquina de escrever jogada em meio a plantas



Se nada ocorrer para alterar a normalidade das sociedades modernas, a inevitável conclusão é que estaremos contribuindo para reproduzir um sistema econômico que funciona com uma lógica irracional que conduz ‘cegamente’ as ações individuais e as práticas sociais no sentido de que realizem agressões à biodiversidade, causem poluição da atmosfera, contaminem a água de superfície e dos aquíferos e influenciem o clima do Planeta. Evidentemente, os vírus deslocados são indicadores da destruição de habitats; as nuvens de gafanhotos, refletem a falta de seus predadores; a prática da utilização de agrotóxicos, antecipa a perda da fertilidade do solo; e as inúmeras dissociações e desigualdades sociais parecem confirmar que “os seres humanos não foram eficientemente projetados” (HOBSBAWM, Erik) para as sociedades modernas. O aquecimento global, as poluições, as contaminações, as pandemias, as nuvens de gafanhotos ... são prenúncios da insegurança alimentar que deverá desabar sobre expressivos segmentos da população mundial.

Estaríamos, então, diante de prenúncios de que já passou da hora de alterarmos a lógica que caracteriza o tempo histórico da modernidade? Que outra ordem econômica e social teria condições de proporcionar condições materiais de vida, culturalmente adequadas, para a diversidade da população mundial? Que desenho social e econômico pode ser apresentado?

As instituições das sociedades modernas funcionam melhor em situação de normalidade ou em situação de crise? Em qualquer situação, funcionam muito bem para poucos e muito mal para a muitos. A atual pandemia não é uma situação de exceção que claramente se contrapõe à situação de normalidade. Na verdade, apenas desnuda e acentua o que já estava posto.

Admitir que a normalidade que se instituiu há quase 250 anos é a “contradição em processo”, significa dizer que as sociedades modernas compõem um sistema-mundo em crise permanente, e não em crise passageira. As crises recorrentes são inerentes a lógica de seu funcionamento. Em suas estruturas, econômicas devem ser encontradas as causas que as provocam. Obviamente que os gestores públicos em geral sempre recorrerão, quando o fizerem, a paliativos para mitigar consequências. Mas, aqueles gestores de corte ultraliberal sempre ficarão restritos à crise financeira como causa imediata dos problemas econômicos cuja resolução se torna prioritária. Daí a justificativa dos ajustes à base de cortes de gastos nos setores das políticas sociais (saúde, educação, previdência social) e a flexibilização da legislação trabalhista. Para os gestores ultraliberais, a solução está na facilitação da vida dos empresários e investidores para que a economia cresça, mesmo que a vida de muitos seja dramaticamente piorada. Para Vilfredo Pareto, economista do bem-estar social, tal decisão não seria a melhor: a vida de poucos melhora, à custa de sacrifícios da maioria.

Muitas transições para outra sociabilidade já se iniciaram em muitos lugares. São portas e janelas que se disseminam e estão à disposição nas ‘bibliotecas’ dos povos tradicionais, na riqueza dos ensinamentos da ciência da Agroecologia e da Economia Ecológica e nas refinadas formas de organização ensinadas pela Economia Solidária. Já está posto o momento da escolha: continuar a normalidade das sociedades modernas ou resgatar a ética da vida como centralidade. A nova era – antropoceno ou capitaloceno – sinaliza para mais pandemias e desastres climáticos. Ou sinaliza para a extinção da raça humana?

Janelas para perceber outro amanhã e portas para chegar lá


Fachada de prédio com janelas e plantas cobrindo as laterais


A continuação da normalidade típica das sociedades modernas aumenta a certeza da ocorrência de colapsos ecológicos com impactos incontroláveis sobre a humanidade e as demais espécies. O amanhã pode ser delineado a partir dos efeitos decorrentes da ultrapassagem dos limites ecossistêmicas. Uma elevação da temperatura média da superfície da Terra e dos oceanos, acima de determinado nível (acima 2º C), poderá ser catastrófico. Fome e múltiplas doenças atingirão expressivos segmentos da população mundial, principalmente aqueles mais vulneráveis.

O ensaio oferecido pela atual crise pandêmico-sanitária, mesmo que previsto, é sempre um fenômeno inesperado, principalmente nas sociedades inebriadas pelo consumismo e por aqueles e aquelas enlouquecidos e enlouquecidas pela ‘síndrome’ do crescimento econômico ilimitado. Cada vez mais claro, as doenças zoonóticas decorrem da fragmentação de habitats, do desmatamento, da mudança do uso do solo, que compõem as ações antrópicas relacionadas ao cumprimento do dogma do crescimento econômico ilimitado.

As injustiças ambientais deslocam humanos; a degradação, a devastação e a destruição de habitats deslocam presas, predadores, hospedeiros e vírus. Mesmo assim, os gestores públicos dos países mais ricos – e mesmo daqueles ditos emergentes – reagem minimizando as consequências sobre a saúde e a vida das pessoas, enfatizando o crescimento da economia.

Ao mesmo tempo que dão pouca importância à vida, esses mesmos gestores acenam com estímulos e suporte financeiro a empresas e bancos para que a economia retome a trajetória do crescimento e assim mantenha o modo de vida consumista das sociedades modernas. De maneira subliminar, mas direta, entre a vida e a economia os gestores públicos e os empresariais pressionam para que a economia volte à normalidade. Por vezes, banalizam a vida com a justificativa de que a morte é inevitável; e, ao mesmo tempo, argumentam que as atividades econômicas não podem parar, pois são essenciais para garantir a vida. Frequentemente vociferam dizendo que a economia tem que ser mantida a qualquer custo.

Essa é a demonstração de que as vidas das pessoas importam, apenas quando estão a serviço da acumulação de riqueza da minoria. Parafraseando Ailton Krenak, em O amanhã não está à venda, o navio não pode ser mais importante do que tripulação.

Em 2008, o Estado prontamente providenciou cerca de 700 bilhões de dólares de ajuda aos bancos norte-americanos. Certamente, as crises simultâneas de hoje demandarão um volume muito mais expressivo de recursos. A estimativa é de um trilhão de dólares para combater os impactos da COVID-19. O fato é que a atuação do Estado foi fundamental em 2008, e será mais ainda em 2020.

Mas, fora dessa via tradicional de socorro, com medidas voltadas para a normalidade do modo de vida hegemônico, que transições poderiam ser consideradas para sair do sistema? O crescimento econômico não está funcionando e a globalização fracassou: não foi possível proporcionar condições de vida dignas para a população mundial. Esta não seria a demonstração cabal de que as soluções devem ser, prioritariamente, encontradas nos territórios e nos locais onde as pessoas habitam?

Outro mundo é possível em que as condições de vida de todos e de todas sejam melhores. Acima de tudo, outros valores teriam que ser cultivados como essenciais como alternativas para a sociabilidade prevalecente. É preciso identificar formas concretas que mostrem claramente que o modo de produção e de vida das sociedades modernas impedem que outros valores sejam apresentados como possibilidades efetivas.

Por que não seria desejável uma sociedade justa, igualitária, democrática, solidária? Por que não seria desejável uma sociedade com igualdade de oportunidades para uma vida plena, com amplo acesso aos meios que garantam o atendimento das necessidades materiais e sociais de cada uma e de todas as pessoas? Tais valores são realizáveis nas sociedades modernas?

Em países como o Brasil – e em muitos outros que jamais alcançarão o padrão de consumo médio dos países ricos –, há janelas abertas mostram caminhos a serem trilhados com ações e práticas inovadoras e eficientes. Os pontos a seguir apresentados correspondem a algumas dessas trilhas que podem contribuir para a construção de outra ‘normalidade’. Certamente, as baterias e as armas dos ativistas que assaltaram o poder no Brasil pela via do voto, irão organizar resistências para impedir que tenhamos uma sociedade igualitária, democrática, inclusiva e solidária. Mas, é preciso abrir as portas e prosseguir por algumas trilhas de possibilidades, mesmo que sejam incertas, para serem experimentadas por dentro das estruturas existentes.

De imediato, é preciso tornar a sociedade mais resiliente a futuros choques pandêmicos que certamente ainda acontecerão. Pela experiência até agora vivenciada com a COVID-19, pelo menos as parcelas mais vulneráveis da população terão que ser amparada com uma renda básica individual permanente, independentemente da situação em que se encontre no “mercado de trabalho”. Ao lado dessa garantia de renda, o Estado terá que implementar políticas para dar mais solidez ao sistema de saúde, suporte à educação em todos os níveis, à pesquisa científica e à apropriação e disseminação dos saberes ancestrais e dos povos tradicionais. Essas políticas terão que ser complementadas com a universalização dos serviços de saneamento e moradia digna. É óbvio que esse aumento de resiliência social jamais será realizado pelo setor privado; mas também é óbvio que o conjunto das políticas beneficiará este mesmo setor privado, com uma oferta de força de trabalho mais sadia.

Outro caminho para consolidar a resiliência de todas as pessoas, e de cada uma indistintamente, é aquele que aponta para a definição do que seja essencial para a saúde humana. Trata-se de bens essenciais, sobretudo voltados para uma alimentação saudável, a serem produzidos de acordo com as técnicas dos sistemas agroecológicos de base familiar, no campo e na cidade. Vale lembrar que o uso e a ocupação do chamado “solo urbano” pode ser redirecionado para que a agricultura também seja urbana.

Ao lado da definição do que seja essencial para uma alimentação saudável, há um sem número de atividades voltadas para os cuidados com o ambiente natural que podem servir para a elaboração de uma base curricular comum aos sistemas de ensino e projetos pedagógicos em todos os níveis. A proteção de nascentes, a recuperação de matas ciliares das nascentes, dos rios e riachos, o reflorestamento com espécies nativas, a estruturação de sistemas de agrofloresta como já fazem os indígenas, a recuperação de áreas degradadas, o cultivo de hortaliças, frutíferas e de fitoterápicos nas zonas urbanas e rurais etc. São alguns exemplos de atividades que favorecem à saúde e à criatividade humana.

Uma trilha fundamental a ser construída tem a ver com o desenvolvimento da ciência e sua aplicação em tecnologias carbono zero. A economia das sociedades modernas tem sua razão de ser apoiada no crescimento econômico ilimitado, um dogma que acarreta aumento do consumo de combustíveis fósseis e, portanto, da emissão de dióxido de carbono. Em termos biofísicos ou termodinâmicos, o crescimento é insustentável porque repousa na extração e degradação de bens naturais comuns a uma escala crescente. Ao mesmo tempo, assenta-se em uma matriz energética de base fóssil, cuja queima cresce junto com o consumo de outros insumos materiais que alimentam o processo econômico. As mudanças climáticas causadas por essa economia fóssil de há muito sinalizam para a necessidade de parar as emissões de CO2, metano e de outros gases de efeito estufa. O aquecimento global aumenta os riscos de encadeamento da extinção de espécies e nos aproxima de colapsos que cedo ou tarde nos incluirão na lista das extinções. A atual trajetória aumenta nossa vulnerabilidade a futuras pandemias.

Muitas das soluções disponíveis são do conhecimento da humanidade, pois resultaram de problemas reais. Como sempre, quando problemas se apresentam as soluções já existem ou estão em vias de serem concretizadas. Contudo, a nova ordem somente poderá ser concebida, e as soluções apresentadas, à medida que ocorra a apropriação crítica do conhecimento existente, com a superação da estrutura de compulsão social que respalda a acumulação de riqueza de poucos. Ou seja, quando os coletivos sociais alcançarem a condição de liberdade inerente aos “produtores associados”.

Garantir a existência biológica, social e espiritual de todos os habitantes da Terra é o único objetivo que poderá postergar a vida neste planeta. E a autoconsciência do homem, a condição necessária para que seja alcançada. Essa condição abre-lhe janelas para reconhecer que os modos de produção e de vida que têm vivenciado resultaram de processos sociais que se estruturaram historicamente. Mas, resultaram de ações humanas que levaram a profundas desigualdades sociais e a ameaças ao nosso suporte de vida. Precisamente por isso, as ações humanas podem ser outras; podem ser orientadas para um constructo social em que a radicalização da vida seja o princípio orientador. As formas sociais que venham a se configurar com outro modo de produção e de vida dependerão da compreensão das contradições que se desenvolveram ao longo da história das sociedades modernas em geral, e da sociedade capitalista em particular.

Uma leitura crítica da normalidade prevalecente permite perceber as sociedades modernas estão envoltas por uma organização econômica que cria empecilhos para uma vida plena. É uma normalidade desigual, injusta, pouco ou nada democrática, cada vez menos solidária e com a liberdade de pensar e de influenciar cada vez mais intimamente vinculada ao poder de compra.

Essas características reafirmam a necessidade da autogestão e da cooperação solidária entre homens e mulheres, com elevado respeito aos direitos da Natureza, valores que certamente contribuirão para construir uma sociedade humana e igualitária. Também, reafirmam a necessidade de reapropriação coletiva do legado cultural dos povos tradicionais que tem por base outros valores que são intimamente vinculados à postergação da vida como princípio central. Assim, para que a humanidade tenha um futuro discernível é preciso que os desgastes sofridos pela força produtiva do homem e a degradação provocada ao ambiente natural sejam interrompidos, caso não queiramos apressar nossa extinção.

Nessa mesma normalidade, as evidências climáticas no século XXI deixam mais claro que a humanidade está reproduzindo um modo de produção e de vida que privilegia a acumulação interminável de capital, a um custo social e ambiental incomensurável. As mesmas evidências marcam uma era histórica que John Merrick, no resumo que faz de Capitalism in the Web of Life de Jason W. Moore, denomina de “capitaloceno”. Pode-se acrescentar, uma ‘era’ em que o ‘ecossistema’ do capital desenvolve tecnologias voltadas para acelerar a mercantilização e a degradação da Natureza; uma ‘era’ em que os ecossistemas terão que processar a matéria degradada como se fosse sua ‘matéria-prima’ natural para assim demonstrar sua funcionalidade na reprodução do sistema do capital.

A nova ‘era’, entretanto, sugere que interação entre economia e Natureza terá que ser diferente de modo a proporcionar uma vida plena para a humanidade; de modo que o atendimento de necessidades humanas reais seja a finalidade. Com a ultrapassagem do ‘capitaloceno’, a nova sociabilidade deverá estar ancorada em outros valores e parâmetros orientados por princípios ecológicos, tendo por perspectiva uma sociedade justa e igualitária. Para tal, o redesenho das relações entre Natureza, sociedade e economia terá que expressar os princípios e leis que regem os ecossistemas.

O encontro entre saberes tradicionais e as ciências, e as tecnologias daí resultantes, afigura-se como um caminho interessante para a construção social de condições de vida saudáveis para o homem. Uma quadro de vida que proporcione um espaço seguro e justo que garanta o atendimento de necessidades individuais e sociais: água potável, soberania alimentar, universalização da educação e da saúde, energia renovável, equidade de gênero, igualdade social, resiliência coletiva, participação política efetiva, dentre outros atributos. As inovações tecnológicas teriam que privilegiar processos econômicos regenerativos, produção agroecológica de alimentos e energia de baixo carbono, sempre voltadas para a produção de comodidades passíveis de conserto e com longa durabilidade.

Nesse sentido, é importante aperfeiçoar as tecnologias que envolvam o reuso e a reciclagem de materiais, bem como as fontes renováveis de energia. As “tecnologias sociais” na produção de alimentos e de outros insumos básicos serão importantes para a ciclagem de elementos nos processos de reaproveitamento. Há vegetais que têm a propriedade de conservar a água das cisternas que recebem água do telhado das casas, como é o caso da semente da Moringa.

No entanto, esse quadro de vida congrega possibilidades que são inviabilizadas pelas estruturas que determinam o modo de produção e de vidas das sociedades modernas. São inviabilizadas porque apontam para o início da história sem fetiches da humanidade. O individualismo possessivo e exacerbado dá lugar ao “indivíduo social” (Karl Marx) como expressão de segurança e coesão social: a solidariedade como a liga da autonomia individual e os ecossistemas como a liga da vida coletiva.

O “indivíduo social” também é a expressão do fim das discriminações, das desigualdades sociais e dos patriotismos, de preconceitos, e a afirmação da consciência de que habitamos a mesma casa. O hedonismo individualista possessivo deixa de prevalecer; e o sentimento de empatia, de compartilhamento e de solidariedade toma seu lugar.

É claro que a tentativa de esboçar o que seria uma nova sociabilidade é apenas uma tentativa de apresentar alguns princípios que contribuam para a percepção de outros caminhos a serem caminhados com os faróis das experiências emancipatórias. Evidentemente, são caminhos valiosos em si mesmos, pois têm a marca de uma pedagogia crítica que aporta valores de vivências e de experimentações de uma escala espaço-tempo ancestral. Um retorno ao passado que fala de perto sobre a necessidade vital de elevação da consciência ecológica planetária. A perspectiva é o atendimento das necessidades humanas reais, dentro dos limites ecossistêmicos à base de constructos socioculturais, considerando as condições biogeofisicoquímicas onde se desenvolverem os novos processos econômicos.

Vale enfatizar, a Economia Ecológica é afirmada como uma pedagogia crítica que contém princípios que servirão para orientar os novos processos de interação entre economia, sociedade e a Natureza; e a Economia Solidária, como modo de organização das atividades produtivas, em estreita articulação com os princípios ecológicos.

As inovações tecnológicas seriam baseadas em conhecimentos científicos orientados para outra finalidade. Não é o lucro, nem a apropriação de seus benefícios por poucos. Mas sim pela busca de condições de vida plena de cada uma e de todas as pessoas. No lugar de atender às exigências da competição, as inovações tecnológicas seriam compartilhadas com todos os países, como uma demonstração da solidariedade internacional. No lugar da “divisão internacional do trabalho”, a divisão internacional da solidariedade; no lugar das trocas desiguais, o intercâmbio de conhecimentos e experiências. Nesse sentido, o modo de vida cultural desses países seria resgatado, junto com o prazer de viver que for próprio de suas respectivas sociedades.

Claramente, um amplo processo educativo voltado para a reprodução da vida em sociedade que aponta para um futuro discernível. Para tanto, a produção das condições materiais da vida terão que estar em consonância às leis que regulam os ecossistemas.

De acordo com as argumentações aqui elaboradas, o Planeta não reivindica salvação e a Natureza não está em crise. A civilização moderna sim. Por isso, não resta à humanidade outra saída para evitar sua extinção precoce: livrar-se definitivamente do modo de produção e de vida das sociedades modernas para que o Planeta continue sendo nossa casa comum por mais tempo.

Com a nova sociabilidade ampliam-se os espaços de liberdade, da democracia direta e dos cuidados com as pessoas e com os bens comuns. A nova sociabilidade revaloriza o passado e reacende as ancestralidades dos povos tradicionais; elimina a produção de supérfluos; descarta a produção midiática de espetáculos e coloca em cena as manifestações culturais genuínas. No lugar do “fim da história”, o início da história humana da humanidade.

Esse quadro de vida contribui para que as experiências ancestrais sejam percebidas como práticas de uma economia ecologicamente orientada, com processos regenerativos e mínimos efeitos entrópicos. Que a economia deve evoluir como um organismo social para atender às necessidades humanas reais, social e culturalmente determinadas.

Nesse sentido, os movimentos sociais que se estruturam com a perspectiva da emancipação humana – contra todos os tipos de discriminação e de injustiças, e que reconhece os limites ecossistêmicos – reúnem um potencial mobilizador de forças sociais e políticas capaz de se contrapor à correlação de forças avassaladoras que ameaçam a vida na Terra.

A ciência e a tecnologia terão que ser reorientadas para viabilizar processos de baixo carbono, para a produção de bens com longa durabilidade e passíveis de conserto. Reorientadas para o desenvolvimento de uma ciência experimental criativa e inclusiva que considere o saber ancestral acumulado pela humanidade.

A redução do tempo dedicado à produção material cria condições para que se tenha um modo de vida orientado para o ócio criativo e para o desenvolvimento de atividades superiores. O tempo dedicado às atividades produtivas terá que ser reduzido a um mínimo de modo que uma parte do tempo de vida seja dedicada à formação científica e tecnológica, e à educação física.

A finalidade da nova organização econômica e social será maximizar o tempo disponível para o ócio (ativo, e não receptivo) a ser usufruído por cada um e por todos os indivíduos. O tempo de usufruto da vida, e não o tempo de trabalho, é o indicador do momento de afirmação humana e a medida da riqueza. As relações sociais reificadas dariam lugar a uma existência emancipada do trabalho alienado. Nesse quadro de vida as pessoas terão possibilidades de serem outras: cuidando do ambiente natural, dedicando-se à formação artístico-científica e fazendo exercícios físicos para uma vida saudável.

Na nova organização, cada espécie desempenha um papel vital para manter a Terra na condição de nossa capa protetora. A espécie humana como centro da autoconsciência terá que agir para assegurar que seus modos de vida sejam consentâneos a essa condição. A nova sociabilidade deixará claro que a liberdade nas sociedades modernas é aparente e que a ilusão de que todas as pessoas alcançarão a felicidade pela via do consumismo, tem por contrapartida a ‘servidão’ de muitos e o privilégio de poucos. Uma causa sem esperança. Por esse caminho, a causa que muitos consideram utopismo será triunfante.
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Nota: * Nesse tempo de pandemia surgem inúmeras frases de efeito e termos imprecisos com o objetivo de explicar o que não é de entendimento amplo. Se a paz iguala as pessoas, é preciso criar uma terminologia que seja apaziguadora da insegurança individual e social. As ideias produzidas pelos interesses e desejos particulares servem para cumprir esse objetivo. Esse é o caso da expressão “novo normal” que surge antes de que algo seja dito sobre o “existente normal”. Com intensa contribuição das mídias de massa, o imaginário fervilha de desejos irrealizáveis, “Vai dar certo”; “sairemos dessa para uma melhor”: são exemplos de clichês que entorpecem as mentes, mas agitam os corações. O “novo normal” é uma tentativa de naturalizar o atual contexto histórico e social para que a realidade não seja pensada criticamente. Mesmo que não seja compreendida, a realidade é como ela se apresenta; é o que é, que assim terá que ser. O “normal” do pós-pandemia terá que ser como antes. As pessoas foram condicionadas a viver na insegurança, porque assim viveram e assim vivem. Tudo terá que voltar ao “normal”, mesmo que inseguro. Mas, o que mostra a atual crise sanitária? Que perspectivas ela projeta? Será que criar clichês ajuda a dar mais segurança social? Não existem outras formas de linguagem que ajudem a compreender os processos de rupturas inerentes às sociedades modernas?


Aécio Alves de Oliveira

aecioeeco@ufc.br

16 julho, 2020

O coronavírus e a economia: um desfecho em aberto (Parte III)



Novo artigo sobre a pandemia e a economia, do professor do Curso de Economia Ecológica da Universidade Federal do Ceará (UFC), Aécio Oliveira. Ele busca traçar rumos para as saídas das crises em que o capitalismo afundou o planeta, agravadas hoje pelo coronavírus.

Lastreado em pensadores como Marx, Harvey, Kopenawa, Benjamin, Klein, Mészáros, Georgescu-Roegen e outros, ele nos convida a refletir sobre conceitos como bioeconomia e decrescimento. Um texto instigante e de fôlego. Uma reflexão urgente e necessária.

Introdução ao desfecho

A ideia de um ‘desfecho aberto’ é pertinente a um processo de reflexão que tem a categoria transição como objeto de estudo. O desfecho é sempre provisório e as transições indefinidas. Mas, as atuais circunstâncias indicam que está passando a hora de que novas práticas sociais sejam iniciadas para mudar a trajetória até então seguida pela humanidade. O caminho do precipício está pavimentado.

O fato é que estamos diante de uma complexidade econômica, política, social e tecnológica nunca dantes vivenciada. E de estruturas que reprimem qualquer pensamento crítico voltado modificá-la. Admite-se apenas que sejam aperfeiçoadas para que se faça mais da mesma maneira.

Várias questões estão postas e várias soluções de há muito têm sido apresentadas. A barreira à implementação das soluções está no fato de que seria necessário um desenho social e econômico enquadrado nas leis que regem os ecossistemas.

Desde a Revolução Industrial, os processos de modernização acentuam a fragmentação social, a individuação e o conformismo. As muitas dissociações que se foram configurando sugerem que é preciso mais bem compreender a matriz de causalidades da construção histórica do atual quadro de vida em sociedade. As pessoas nas sociedades modernas estão envoltos em uma forma de dominação impessoal, sutil e sórdida que as leva ao apagamento do passado, e que coloniza o futuro, para que o presente se afirme como única alternativa. É preciso viver o agora como se houvesse amanhã.

O ‘encontro’ histórico do capital com a sociedade capitalista possibilitou o surgimento de um sistema metabólico que reúne elementos materiais, sociais, políticos e subjetivos articulados por um processo de dominação “impessoal, crescentemente abstrata e quase objetiva” (Moishe Postone). A impessoalidade se impõe de maneira a desumanizar as relações sociais em todas as dimensões. Do mesmo modo como ocorre com os organismos vivos, essa dominação impessoal e sutil inocula processos de dissociações que afetam o organismo social à base de reações de síntese e de desassimilação. Importa, sobretudo, que a energia gerada impulsione a reprodução do capital em escala ampliada.

Das reações de síntese resulta a produção do valor (e da mais-valia), cuja fonte é o consumo de força de trabalho: a reprodução do sociometabolismo do capital depende da energia fornecida por esta mercadoria. Da ‘digestão’ de força de trabalho e das demais mercadorias que compõem a base material deste modo de produção resulta uma infinidade de mercadorias que são produtos do trabalho humano destinados à venda.

A desassimilação explicita-se com a contradição central do sistema do capital – que transborda como degradação dos mananciais de sua riqueza (o homem e a Natureza) –como uma espécie de ‘rejeição’ inerente a este organismo. A ‘rejeição’ tem por expressão dramática a perda de importância da força de trabalho e a dilapidação da Natureza, ambas mananciais de sua reprodução, vale repetir. A ‘rejeição’ é o rejeito do sociometabolismo do capital.

A face cruel dessa volúpia pela desassimilação é que, ao lado do ‘descarte’ humano que já atinge cerca de metade da população mundial, outros efeitos vão se acumulando e se tornando irreversíveis. São processos que, contraditoriamente, poderão inviabilizar a reprodução do sistema na escala pretendida pelos executores dessa (ir)racionalidade econômica. A irracionalidade que conduz os processos econômicos contribui para acelerar as agressões à biodiversidade, para aquecer o Planeta e poluir a atmosfera, os cursos d’água e os aquíferos. A reprodução ampliada do sociometabolismo é seguida de um crescente custo entrópico irreversível.

A Natureza emite diversos sinais. Os sinais nos chegam sob a forma de eventos climáticos intensos, destruição de habitats, de perda da fertilidade do solo, de pandemias virais etc. A perda de biodiversidade, o aquecimento global, a poluição e as várias contaminações – processos que se reforçam mutuamente – são sinais que sugerem a proximidade de uma encruzilhada. Na realidade, um momento de escolha vital entre continuar a normalidade do modo de produção e de vida social até então hegemônicos ou iniciar transições para outra sociabilidade.

Se, por um lado, a contradição central do capital significa autoameaça, em virtude do estreitamento de sua base de valorização, por outro, a finitude da Terra significa ameaça total, em virtude da escassez material absoluta. A contradição e a finitude compõem a condição dramática que resultará em importantes repercussões na geopolítica mundial. Além das ‘guerras’ contra novos vírus e contra novas cepas daqueles já conhecidos, novas guerras virão pelo controle do que restar em termos de recursos naturais. Em particular, a “guerra da água”.

O capital, portanto, é um sistema aberto com pretensões de crescimento ilimitado que funciona dentro de um ecossistema global fechado e materialmente limitado. Essa característica sistêmica e as desigualdades sociais que se geraram historicamente são suficientes para fomentar um debate em busca de um ambiente ecologicamente saudável para as espécies que ainda habitam o Planeta.
Cabe perguntar: os mecanismos de mercado são adequados para combater e eliminar a pobreza e a degradação da Natureza? Com o respaldo da história, a resposta é não. O que fazer?

O tema da superação do capitalismo (rigorosamente, caminhar para além do capital) entra em pauta, a despeito das reações e argumentos em contrário que venham de seus defensores ou mesmo de seus críticos. Caso queira postergar sua existência, a humanidade terá que enfrentar este desafio: a realidade está falando em alto e bom som. A “humanidade não se propõe nunca senão os problemas que ela pode resolver” (Karl Marx). E que “o próprio problema só se apresenta quando as condições materiais [as soluções] existem ou estão em vias de existir” (Idem). Como indicação mais geral, a nova ordem somente poderá ser concebida à medida que ocorra a apropriação subjetiva da cultura objetiva existente, com a superação da estrutura de compulsão social abstrata enraizada. Em última instância, a superação do trabalho alienado.

Particularmente nos últimos 40 anos, o sistema do capital vem se afirmando como incontrolável e irreformável (István Mészáros). Suas contradições e capacidade destrutiva aprofundam a insegurança e as desigualdades que decorrem de seu ímpeto progressivo. Historicamente, a produção do capital aperfeiçoa seu potencial destrutivo e, ao mesmo tempo, amplia sua capacidade de ‘criar’ a partir da ‘destruição’ que patrocina. Até mesmo os desastres causados por fenômenos naturais se convertem em oportunidades de investimento. Fenômenos naturais, tais como tsunamis, furacões, erupções vulcânicas, terremotos; ou de outras origens, tais como pandemias, guerras religiosas ou as guerras pelo controle de fontes fósseis; são estímulos para o crescimento econômico. O “capitalismo do desastre” (Naomi Klein) é a expressão que melhor retrata essas circunstâncias a serem aproveitadas para a realização de investimentos rentáveis.

Se a sociedade não ‘cresce’ (saúde, educação, moradia, segurança, ocupação, renda, equidade...), junto com a economia, mas a ela se subordina e ‘diminui’; se a eliminação de muitos “postos de trabalho” e a precarização das “relações de trabalho” geram inseguranças, produzem desigualdades e empobrecimento; têm-se fortes indícios de que o sistema de trabalho dá demonstrações de esgotamento como organizador de mediações sociais. Assim, não se pode dizer que o trabalho tenha potencial de emancipação; não se pode dizer que o “trabalho dignifica o homem”. Na verdade, o sistema de trabalho é a prisão dos servos da modernidade.

Outro fim do mundo é possível


Não tenho medo. Para a cultura yanomami quem é guerreiro e organiza lutas não tem medo de morrer. Quem rouba é que tem que ter medo. Não sei o que pode acontecer, mas não tenho medo e não quero fugir.(Dário Vitório Kopenawa Yanomami1)

Enquanto houver Sol é aqui que podemos realizar a vida: garantir nossa existência biológica, social e espiritual. Para isso, é crucial admitir que a Terra seja uma esfera – não é uma planície! – diminuta que serve de suporte de vida para todas as espécies. E que, mesmo que o homem seja dotado da condição de centro da autoconsciência, também depende da biosfera como seu invólucro de vida. Enquanto houver Sol haverá Terra.

Ao mesmo tempo, é preciso que o homem perceba que sua condição de centro da autoconsciência abre-lhe janelas para reconhecer que os modos de produção e de vida que tem vivenciado resultam de processos sociais que se estruturaram historicamente. O que estamos vivenciando na atualidade das sociedades modernas é parte desses processos: ações humanas que levaram a profundas desigualdades sociais e a ameaças ao nosso suporte de vida. Precisamente porque resultaram de ações humanas são passíveis de mudanças, mais ou menos profundas, por mais complexas que pareçam as estruturas que organizaram e organizam o constructo social em que estamos enredados. Daí porque a radicalização da vida terá que ser o princípio orientador das mudanças necessárias à estruturação de outro modo de produção e de vida consentâneos ao suporte de vida que protege as espécies.

Diante das atuais circunstâncias cabe indagar: é possível imaginar um mundo em que as guerras e as diversas violências não sejam mais do que reminiscências registradas na memória dos computadores e nos arquivos dos bancos de dados? É possível imaginar um mundo em que não exista fome, não haja discriminações ou dissociações de nenhum tipo, em que seja possível a convivência das várias espécies, sem afetações graves à biodiversidade e aos ecossistemas? É possível recuperar a unidade campo-cidade para que a Natureza não seja confundida apenas pelo espaço ocupado pelas florestas, pelas árvores e pelos rios? Se a resposta for sim, continuemos junto com o Sol; se a resposta for não, canibalizemo-nos.

Dados e relatos sobre a devastação causada em partes significativas da Terra – a África é um exemplo histórico dramático – demonstram que, para responder afirmativamente a essas questões é preciso muito mais do que a crença em um futuro promissor. Ampliam-se as evidências de que a racionalidade econômica que domina a vida nas sociedades modernas, centrada no acúmulo de riqueza abstrata, está na base dos problemas ambientais e sociais que se multiplicam. Uma racionalidade com a qual jamais será possível para quase oito bilhões de pessoas alcançarem os níveis médios de consumo dos países ditos desenvolvidos. Não será possível, mas os fetiches vociferados pelas mídias de massa insistem em dizer que sim. A finitude da Terra torna tal possibilidade inalcançável.

Diante da finitude do Planeta, caminhar na direção do estilo de vida dos países centrais será catastrófico para a humanidade. Apenas os USA, cuja população cresceu de 100 milhões em 1920 para quase 331,0 milhões de habitantes, em 2014 – que hoje representa cerca de 4,25% da população mundial – ilustram a impossibilidade apontada. Em Annie Leonard encontra-se uma lista da Global Footprint Network (GFN) de quantos ‘planetas’ seriam necessários para disseminar pelo mundo o padrão de consumo de alguns países. Para que todos os habitantes da Terra tenham o padrão de consumo dos USA, seriam necessários 5,4 planetas; em termos do padrão da Costa Rica, 1,1 planeta; com o padrão de consumo da Índia, 0,4 planeta. O problema é que só existe um planeta.

Seria possível um crescimento econômico capaz de proporcionar à população de todos os países o padrão de vida alcançado pelas nações tidas como ricas? A disponibilidade de bens naturais comuns seria suficiente para tal?

Claramente, o crescimento econômico do pós Guerra II tornou visível que pobreza e riqueza são irmãs siamesas. Desde a metade do século XX e no atual século, o processo de expansão capitalista tem acentuado as desigualdades. Como regra, os benefícios apropriados por diminutos segmentos que compõem o topo da pirâmide social sintetizam a concentração da renda e da riqueza no mundo.

Assim sendo, que futuro pode ser vislumbrado para as áreas onde prevalecem uma pobreza dramática e não chegam os benefícios mínimos do progresso das ciências e da tecnologia produzidos pela autoconsciência humana?

Por vezes, a trajetória do desenvolvimento capitalista é apresentada como um processo repleto de positividades, em virtude da expansão da produção industrial e das inovações tecnológicas de produtos e de processos. Mistifica-se o percurso trilhado pela ciência e pela tecnologia como fonte de um desenvolvimento neutro que beneficia ou poderá beneficiar a todas as classes sociais, indistintamente.

O outro lado da mistificação da neutralidade da ciência e da tecnologia contribui para que a humanidade se veja irremediavelmente envolta por um sistema-mundo complexo e alienado como nunca dantes acontecera. Embora esse sistema tenha sido obra das ações e das estruturas criadas pelas pessoas e pelas classes sociais, a complexidade prevalecente apresenta-se como um poder paralisante e sempre fora de controle. Contudo, a complexidade e a alienação ganham concretude ao confirmar que se trata de uma maneira irracional de ‘conduzir’ a vida em sociedade, pois submete a satisfação das necessidades humanas aos ‘humores’ do mercado e da finança, a quem a ciência e a tecnologia, como regra geral, estão subordinadas.

A demonstração da incontrolabilidade deste sistema é mais visível nos países ditos emergentes. Isso porque, nestes países, os dedicados condutores da economia curvam-se diante dos interesses das grandes corporações e das instituições que avaliam o risco de investir em cada um deles. Trata-se de um modo de controle monitorado de fora que se impõe de tal maneira que as determinações dos organismos ditos multilaterais se torna a opção de menor resistência que agrada amplamente às mídias e aos potenciais investidores. Como resultado dessa submissão, instauram-se diversas formas de violências, de dissociações, de inseguranças e de vulnerabilidades. Desemprego, perda de direitos individuais e coletivos, afetações ambientais, guerras e disputas interestatais por fontes de combustível fóssil etc.: são as consequências que conformam o “horror econômico”(Viviane Forrester) e político no cotidiano de bilhões de pessoas em partes significativas do mundo. Essa submissão contribui para a destruição de ecossistemas em escala ampliada.

Os aspectos destrutivos decorrentes do crescimento econômico ilimitado estão presentes e visíveis de uma maneira tal que nenhum país poderá ignorá-los. A contaminação da água e do ar, a devastação de florestas, o esgotamento de fontes fósseis de energia, tudo isso irá impor, embora paradoxalmente, o compartilhamento de interesses entre ricos e pobres, pois se trata de uma questão de sobrevivência planetária. Até mesmo alguns segmentos privilegiados dão indícios de que parecem tomar consciência dos processos que ameaçam ou destroem o ambiente natural, cujas consequências econômicas e sociais são completamente indesejáveis. Os sinais são o aquecimento global e as desigualdades sociais.

Diante dessas considerações, pode-se afirmar que o sistema do capital cava sua própria sepultura, ou que está cavando a sepultura da humanidade? Existem experiências que apontem para outro modo de reprodução material e cultural da vida em sociedade? Que possibilidades são essas que servem de contrapontos e sugerem a necessidade de finalização de sua missão histórica?

De ida para o passado



Nós, povos da floresta, yanomami, não criamos doenças. A gente lida com respeito à natureza, conhecemos o sistema da floresta, como funciona o meio ambiente. Sabemos que não podemos causar problemas a ela, sabemos da vida yanomami com a mãe terra. (Dário Vitório Kopenawa Yanomami)

Não se trata de voltar aos primórdios da humanidade ou ao ‘romantismo’ dos socialistas utópicos, mesmo que estes tenham princípios e ensinamentos a serem considerados. Mas, um romantismo, quando eivado de protesto contra a civilização industrial moderna que reifica as relações sociais com a lógica do lucro, torna-se revolucionário. Mesmo porque, continuar a trajetória da moderna sociedade produtora de mercadorias é uma insanidade; é um devaneio, algo irrealizável. As profundas desigualdades que se distribuem desigualmente no mundo são os sintomas mais visíveis da impossibilidade de sua continuidade, bem como da crescente necessidade de transformação da sociabilidade prevalecente.

As formas sociais que venham a se configurar com outro modo de produção e de vida dependerão, certamente, e como sempre, do incitamento das mentes e dos corações daqueles que compõem os segmentos organizados da sociedade, da intensidade de sua disposição, das saídas reais identificadas a partir da compreensão das contradições que se desenvolveram ao longo da história do capitalismo. Também dependem da reapropriação coletiva do legado cultural dos povos tradicionais.

A ida ao passado tem por perspectiva um futuro de valores que tem a postergação da vida como centralidade. Não é simplesmente restabelecer o ethos pré-capitalista, mas recuperar seus significados originais, juntamente àqueles atribuídos originalmente a oikonomos. Nossa casa comum está sendo remodelada à imagem e semelhança do sistema do capital; reformatada pela lógica irracional da riqueza abstrata. Para impedir a conclusão dessa ‘obra’ o romantismo contestatório do passado e a reconfiguração do futuro, tendo por base uma leitura crítica da normalidade do presente, para que daí resulte uma visão de mundo em que prevaleçam a autogestão e a cooperação solidária entre homens e mulheres, em uma sociedade humana e igualitária.

A ultrapassagem da ordem atual é reconhecidamente muito complexa. Não se pode subestimar a capacidade desse sociometabolismo de assimilar os movimentos e as lutas sociais e alternativas que vierem a se lhes contrapor. Tal capacidade encontra seu momento de ativação nos meandros da circulação monetária (onde o dinheiro exerce sua condição de divindade visível) e da circulação de mercadorias (a arena em que a competição leva a eliminação inconsciente do outro). A essas duas esferas, confluem os fetiches criados e disseminados pelos aparelhos ideológicos da sociedade moderna, suas mídias e a repressão direta ou institucionalizada do Estado. Evidentemente, esse aparato dificulta o desenvolvimento de outros mecanismos e estruturas que se convertam em força objetiva voltada para ‘destruir’ a ordem social, econômica e política prevalecente.

Não se trata de voltar aos primórdios da humanidade ou ao ‘romantismo’ dos socialistas utópicos, mesmo que estes tenham princípios e ensinamentos a serem considerados. Mas, um romantismo, quando eivado de protesto contra a civilização industrial moderna que reifica as relações sociais com a lógica do lucro, torna-se revolucionário. Mesmo porque, continuar a trajetória da moderna sociedade produtora de mercadorias é uma insanidade; é um devaneio, algo irrealizável. As profundas desigualdades que se distribuem desigualmente no mundo são os sintomas mais visíveis da impossibilidade de sua continuidade, bem como da crescente necessidade de transformação da sociabilidade prevalecente.

As formas sociais que venham a se configurar com outro modo de produção e de vida dependerão, certamente, e como sempre, do incitamento das mentes e dos corações daqueles que compõem os segmentos organizados da sociedade, da intensidade de sua disposição, das saídas reais identificadas a partir da compreensão das contradições que se desenvolveram ao longo da história do capitalismo. Também dependem da reapropriação coletiva do legado cultural dos povos tradicionais.

A ida ao passado tem por perspectiva um futuro de valores que tem a postergação da vida como centralidade. Não é simplesmente restabelecer o ethos pré-capitalista, mas recuperar seus significados originais, juntamente àqueles atribuídos originalmente a oikonomos. Nossa casa comum está sendo remodelada à imagem e semelhança do sistema do capital; reformatada pela lógica irracional da riqueza abstrata. Para impedir a conclusão dessa ‘obra’ o romantismo contestatório do passado e a reconfiguração do futuro, tendo por base uma leitura crítica da normalidade do presente, para que daí resulte uma visão de mundo em que prevaleçam a autogestão e a cooperação solidária entre homens e mulheres, em uma sociedade humana e igualitária.

A ultrapassagem da ordem atual é reconhecidamente muito complexa. Não se pode subestimar a capacidade desse sociometabolismo de assimilar os movimentos e as lutas sociais e alternativas que vierem a se lhes contrapor. Tal capacidade encontra seu momento de ativação nos meandros da circulação monetária (onde o dinheiro exerce sua condição de divindade visível) e da circulação de mercadorias (a arena em que a competição leva a eliminação inconsciente do outro). A essas duas esferas, confluem os fetiches criados e disseminados pelos aparelhos ideológicos da sociedade moderna, suas mídias e a repressão direta ou institucionalizada do Estado. Evidentemente, esse aparato dificulta o desenvolvimento de outros mecanismos e estruturas que se convertam em força objetiva voltada para ‘destruir’ a ordem social, econômica e política prevalecente.

Mas, essa capacidade de assimilar movimentos, lutas sociais e alternativas não tem sido suficiente para impedir que experimentações, mais ou menos radicais, sejam tentadas e realizadas. No mínimo, as experimentações servirão como ‘sementes’ de uma mudança, de que é possível, sobretudo necessário, outro modo de vida.

Também cresce a convicção de que, “se a humanidade quer ter um futuro reconhecível, não pode ser pelo prolongamento do passado ou do presente” (Eric Hobsbawm). Mais concretamente, pode-se acrescentar, se a humanidade quer ter um futuro discernível, a construção deste futuro não pode ser a continuação do passado, pois os desgastes sofridos pela força produtiva do homem e provocados ao ambiente natural de há muito estão no presente. Esse alerta apenas relembra a preocupação quanto às tendências e contradições observadas ao longo da história da expansão do capitalismo no mundo. Serve para mostrar ainda por que “os seres humanos não foram eficientemente projetados” (Idem) para a reprodução ampliada do capital. Soa como uma espécie de prenúncio de que a humanidade terá que inverter a trajetória impulsionada pela razão do capital, caso não queira apressar sua extinção.

Por outro lado, os contrapontos ao modo de produção e de vida prevalecentes terão que ser, necessariamente, orientados pelos princípios que regem os ecossistemas; as leis que regem a economia da Natureza. Certamente, mais uma vez, não é uma empreitada simples, pois exigirá intensas lutas sociais de amplitude mundial que envolvam todos os segmentos sociais dispostos a detonar as desigualdades históricas e a eliminar os riscos que ameaçam a existência da humanidade.

Por que o balizamento para outro modo de produção e de vida terá que ser os princípios que regem a economia da Natureza?

Talvez seja interessante considerar a dimensão temporal nas relações entre economia, sociedade e Natureza nos seguintes termos: tempo da Terra, tempo do sapiens e tempo histórico.

A contagem do tempo da Terra começa com a cosmologia do Big Bang (há mais de 13 bilhões de anos). É o “tempo-rei”, ou seja, aquele que contém todos os tempos; é o tempo da evolução de todas as espécies, desde suas origens, mutações e extinções. A condição de seta do tempo, no rumo do infinito, não depende de nenhuma espécie em particular (nem mesmo da espécie humana). Basta lembrar que várias espécies esgotaram seus processos evolutivos – passaram por processos de mutação ou foram extintas pelas ações antropogênicas –, e que outras se encontram ameaçadas de extinção por estas mesmas ações. Desse modo, o tempo da Terra contém o tempo do sapiens que, por sua vez, contém o tempo histórico.

A contagem do tempo do sapiens provavelmente se inicia há 40 ou 50 mil anos. Mas, somente por volta de “12 mil anos atrás, a humanidade começou a revelar as primeiras tentativas de controlar e adaptar a evolução natural às suas próprias necessidades. Começou com a agropecuária: a criação artificial de animais e culturas agrícolas para a alimentação” (Christopher Lloyd). Inicia-se, assim, a fixação das primeiras hordas em locais bem definidos e a estruturação das primeiras sociedades humanas. Contudo, apenas há cerca de 5 mil anos aparecem os primeiros sinais de uma civilização sedentária nos registros inscritos das civilizações no Oriente Médio. Essas epígrafes encontradas em superfícies sólidas marcam o início do tempo histórico da humanidade e do grande salto do sapiens em direção ao inescrupuloso domínio da Natureza.

Domínio sem cautela que desconsidera “o velho axioma de história natural ... Natura non facit saltum”. Para Charles Robert Darwin – naturalista, geólogo e biólogo britânico –, “a natureza é pródiga em variedades, mas avara em inovações”. Assim, “a seleção natural, com efeito, atua apenas aproveitando leves variações sucessivas, não pode, pois jamais dar saltos bruscos e consideráveis, só pode avançar por graus insignificantes, lentos e seguros.” Com a civilização dita moderna altera-se profundamente a relação do homem com a Natureza, em seu modo de produzir (a economia) e de organizar a sociedade (modo de vida).

Ao contrário, o sistema do capital é pródigo em novidades e prenhe de inovações. Para tanto, se apropria da ciência e da tecnologia com o objetivo de ampliar o rol de mercadorias à disposição da sociedade. Se utiliza de estratégias para mercantilizar a vida, disseminar fetiches e estimular a cobiça de suas personas. Com as inovações tecnológicas, capital facit saltum.

As relações sociais de produção que marcam os vários momentos das sociedades humanas definem os respectivos tempos históricos. Pode-se dizer que, na Antiguidade, o tempo histórico guardava uma relação estreita com o tempo da Natureza, as estações, os tempos de colheitas, determinavam o modo de vida em sociedade.

Com a Revolução Industrial, o tempo e o espaço se redefinem e com ela o tempo do capital assume a condição de tempo histórico, com pretensão de ser “tempo-rei”. A busca de aumentos de produtividade leva à compressão do tempo-espaço e à intensificação das agressões aos ecossistemas para atender às necessidades de reprodução desse novo sociometabolismo. Esta é face real da lei da produtividade crescente que se impõe a todas as frações do capital.

Com o tempo definido pelo sistema do capital as ações antrópicas voltadas para dominar a Natureza, degradam os ecossistemas e provocam consequências nefastas ao homem e às demais espécies. Apesar da relação de dependência material e energética, o capital, em sua interação com a Natureza, reproduz a si, mas produz um ambiente natural que lhe será adverso. Cedo ou tarde, as limitações materiais do Planeta serão alcançadas, mas antes deverão ocorrer rupturas sociometabólicas de consequências dramáticas.

Se a Terra se tornou um “lugar muito mais acolhedor para a vida humana, e nos últimos três séculos, para a atividade lucrativa” (David Harvey), a mesma coisa não pode ser dita para as demais espécies, aquelas que foram extintas ou que estão ameaçadas de extinção. Na realidade, tornou-se um lugar mais acolhedor para o top 1% do que para os 99% da população de indivíduos humanos. Essa circunstância em nada afeta a volúpia e a capacidade de adaptação do capital em sua trajetória expansionista para benefício de poucos.

Pode-se dizer que, da relação contraditória entre o sistema do capital e a Natureza resulta um ‘ecossistema’ cuja dinâmica potencializa rupturas sociometabólicas de consequências dramáticas. A elevação da entropia, a mudança climática e as profundas desigualdades econômicas e sociais são seus indicadores-sínteses.

O ‘ecossistema’ do capital (ou “capitaloceno”, como denomina John Merrick) estimula o desenvolvimento de tecnologias voltadas para a apropriação eficiente dos processos naturais. Em troca devolve matéria degradada (e energia dissipada) para que o outro sistema (a Natureza) se encarregue de processar como se fosse sua ‘matéria-prima’. A Natureza agora terá que fazer uso da capacidade de suporte de que dispõe para demonstrar sua resiliência e importância como se fora parte funcional da reprodução do sistema do capital.

Diante dessa situação, a biodiversidade, os serviços ecossistêmicos e o clima entram em ‘desentendimentos’, uma vez que têm sido ‘instados’ a redefinir suas funções sistêmicas originais para dar respostas às crescentes demandas da economia do capital. Os ‘entendimentos’ originais envolviam eventos climáticos, processos evolutivos das espécies animal e vegetal, dentre outros, que se desenrolavam desde o Big Bang (a Grande Expansão). Agora, a Natureza reformatada pelo capital ganha mais imprevisibilidade “em razão das mutações aleatórias autônomas e das interações dinâmicas embutidas no processo evolutivo em geral” (David Harvey).

O modo como se dá a interação entre homem e Natureza depende de relações sociais de produção que se estabelecem historicamente. Se a interação tiver por finalidade única e exclusiva, o atendimento de necessidades humanas reais, a eficiência das atividades produtivas (a economia) terão outros valores e parâmetros de orientação. Tal circunstância é propícia para o desenvolvimento de relações comunitárias, de cooperação e de solidariedade.

Se a finalidade da economia for a produção rentável de mercadorias – como ocorre nas sociedades modernas – os bens comuns serão tratados como objetos de exploração (fontes de lucro) para acumulação de capital. Tal circunstância é propícia para o desenvolvimento de relações mediadas pelas coisas, em que prevalecem um individualismo possessivo exacerbado, a competição e o cada um por si.

Desse modo, a expansão capitalista global leva a um crescimento do consumo dos bens comuns incompatível à finitude de sua disponibilidade no Planeta. Ao mesmo tempo, acarreta o crescimento da carga de resíduos a serem absorvidos pelos ecossistemas. Sendo o capital o único limite reconhecido pelo capital, isso significa simplesmente que este modo de produção não vai se deter enquanto houver tecnologias que viabilizem a lucratividade dos investimentos, mesmo diante da ameaça de esgotamentos das fontes materiais disponíveis na Terra.

Uma conclusão que pode ser antecipada é que a humanidade se encontra, hoje, diante de uma escolha ética: continuar a trajetória linear intensa iniciada há pouco mais de 250 anos, e alcançar os limites planetários ou ecossistêmicos, ou redesenhar as relações entre Natureza, sociedade e economia. A trajetória linear tem a ver com o dogma do crescimento econômico a qualquer custo; e o redesenho tem a ver com outra trajetória orientada pelos princípios e leis que regem os ecossistemas. Um ponto vital: a nova sociabilidade deverá estar ancorada em princípios ecológicos, tendo por perspectiva uma sociedade justa e igualitária.

Como então construir algo diferente a partir do que se está negando? Quais os contornos da nova matriz para que os processos de organização da economia e da vida em sociedade sejam opostos àqueles que caracterizam o ‘ecossistema’ do capital?

O encontro entre saberes e conhecimentos, e as tecnologias daí resultantes, orientado pela biodiversidade e os serviços ecossistêmicos, afigura-se como um caminho interessante. Trata-se de um caminho orientado por uma hegemonia cultural que tem as demais espécies e os ecossistemas como base para as atividades voltadas para a construção social de condições de vida saudáveis para o homem.

Nesse sentido, todos os processos de organização da economia e da vida em sociedade teriam que estar imbricados dentro da hierarquia que estabelece uma nova ordem de importância nas relações vitais entre Natureza, sociedade e economia. Antes de tudo, são relações balizadas pelos limites ecossistêmicos para que seja possível a estruturação de um quadro de vida em sociedade como um espaço seguro e justo para a humanidade. Em última instância, os processos econômicos ficariam inteiramente enquadrados nesses limites, bem como em fundamentos de justiça e de participação efetiva das pessoas na tomada de decisão.

Os limites ecossistêmicos servem como fronteiras para as ações antropogênicas na estruturação de outro modo de produção e de vida em sociedade. A prudência sugere que os processos econômicos terão que ser socialmente controlados, segundo critérios de minimização da entropia e da conservação da resiliência dos ecossistemas. Os limites ecossistêmicos não podem ser alcançados, mas sim radicalmente evitados para que se possa potencializar os efeitos positivos proporcionados pela biodiversidade e pelos serviços ecossistêmicos. É a condição necessária para garantir um quadro de vida adequado às espécies que habitam o Planeta.

O quadro de vida antes referido, com uma organização social e política que proporcione um espaço seguro e justo para a humanidade, teria como função principal garantir o atendimento de necessidades individuais e sociais: água potável, soberania alimentar, universalização da educação e da saúde, energia renovável, equidade de gênero, igualdade social, resiliência coletiva, participação política efetiva, dentre outros atributos. Assim orientada, a minimização dos efeitos entrópicos seria alcançada com processos econômicos regenerativos, produção agroecológica de alimentos e desenvolvimento de tecnologias de baixo carbono voltadas para a produção de bens com longa durabilidade.

Alguém poderia argumentar que tudo isso não passa de “Notícias de Lugar Nenhum”.1 Vale retrucar com outras poucas perguntas. E quando ocorrer o esgotamento dos recursos (finitos) da Terra? E se a mudança climática hoje observada for apenas o início da ‘reação’ da Natureza às agressões impetradas com o crescimento econômico exponencial? E se o consumismo comprometer a capacidade de suporte dos ecossistemas? E se as ações antropogênicas forem consensualmente admitida como a causa principal dos desequilíbrios ecossistêmicos? E se a ocorrência de pandemias for mesmo o resultado do desmatamento e da destruição de habitats? E se a humanidade se vir diante de condições irreversíveis de vulnerabilidade? E se...?

É evidente a estreita relação entre desmatamento, perda de biodiversidade e de serviços ecossistêmicos e a infestação de doenças zoonóticas como a Covid-19. O homem e os animais disputam o mesmo espaço de sobrevivência. Conforme o biólogo norte-americano Jared Diamond, a história das civilizações e o seu colapso são fruto do modo pelo qual se relacionaram com o entorno, com o ambiente natural e seus recursos.

O processo de degradação das condições de vida de expressivos segmentos da população mundial fica escamoteado com a disseminação da ideia-fetiche de que não existe alternativa civilizada para a sobrevivência da espécie e que a formação socioeconômica capitalista é a organização mais adequada à natureza (egoísta) do ser humano. Na realidade, não passa de uma apologia que tem por intenção ideológica adaptar a humanidade à fundamentalmente inalterável natureza cultural do capital, qual seja, a de ser, ao mesmo tempo, um metabolismo social orientado para a contínua expansão e de assim proceder sem precatar os interesses vitais, presentes e futuros, da humanidade.

O sistema do capital se tornou um juggernaut. Uma entidade possuída de uma força impiedosamente destrutiva e incontrolável que não poupará nem mesmo seus mais ‘devotos’ seguidores. O homo sapiens, por sua vez, é um servo possuído de uma cegueira profunda que age como um robô para acionar um aparato técnico-científico que acelera a destruição de suas condições de vida na Terra.

Um aparato envolto por fetiches que subliminarmente insinuam que as tecnologias logo encontrarão outra moradia. Certamente, o cosmos está à disposição para que o homo sapiens escolha onde o capital irá para continuar sua incontrolável e insaciável volúpia por acumulação. Mas... e se não houver outra moradia?

Agora e à frente



Vocês destroem a terra, as florestas, matam os povos indígenas, provocam mudanças climáticas no mundo inteiro. O que está acontecendo é resultado do homem branco não deixar a mãe terra em paz. Quando a doença voltar para debaixo da terra, ela já vai ter comido os não indígenas e indígenas e vamos viver como restos de comida. Para vocês será uma nova vida. Mas nós já sabemos que tudo foi resultado da vingança da mãe terra. Nós já a entendemos. A pandemia vai deixar uma mensagem para vocês entenderem que é uma vingança universal. Vocês, como brancos, vão aprender que estão na nossa casa. (Dário Vitório Kopenawa Yanomami)


A COVID-19 marca 2020 como o ano da falência desse sistema antivida. Marca do fracasso da economia capitalista de mercado e da economia de comando central. Daqui por diante, aos condutores do modo de produção e aos estimuladores do consumismo das sociedades modernas não resta outro caminho para a normalidade de antes que não a via da imposição fascista ou do autoritarismo para dar continuidade ao dogma do crescimento econômico.

Mas, por muito tempo ainda os escombros materiais e psicológicos da pandemia e da inércia da economia, do Estado e da política ainda estarão nas mentes e corações de muitos. Isso porque o coronavírus elevou a consciência de que as estruturas existentes beneficiam o minimum mimorum da sociedade.

Muitas são as fragilidades que estão sendo dramaticamente desveladas em 2020. Até mesmo o Estado, sempre presente com iniciativas para recuperar a economia em momentos de crises, mostra-se inefetivo para mitigar os efeitos decorrentes de desastres ambientais naturais, e agora os efeitos da pandemia causada pela COVID-19. O conflito real entre a economia (bolsa de valores, mercado cambial, investimento, ajuste fiscal, dívida pública, flexibilização do trabalho etc.) e a vida (alimentação, saúde, educação, moradia, cultura, justiça, ambiente natural sadio etc.) é a expressão de um momento importante da encruzilhada: a escolha vital entre continuar a normalidade do modo de produção e de vida social até então hegemônicos ou iniciar transições para outra sociabilidade. No entanto, a solução que se apresenta para a continuação do normal de antes da pandemia é a retomada mais cruelmente requintada do ideário que respaldou os últimos 40 anos de medidas ultraliberais e causou dramáticas desigualdades sociais e profunda degradação ambiental.

O sistema metabólico do capital acirra ‘confrontos’ com o ecossistema Terra, confrontos estes que, cedo ou tarde, repercutirão como perda de biodiversidade e de serviços ecossistêmicos. Um resultado grave é a destruição de habitats naturais e a fragilização da saúde humana, em virtude da liberação de vírus de seus hospedeiros. A contaminação química dos cursos d’água e do solo também contribuem com a extinção de espécies e para a disseminação de doenças respiratórias e incidência de cânceres. A ciência e as inovações tecnológicas, em geral estimuladas pela maximização do lucro, proporcionam tanto conforto e descobertas maravilhosas, mas reforçam as crises econômicas e sociais e os colapsos ambientais.

Nas circunstâncias atuais de pandemia, por mais estranho que pareça, constata-se por todo o mundo um empresariado tacanho e insensível, em cujas lentes está gravado o desenho dos cifrões que dão sentido a suas vidas, pressionando pelo reabertura da economia e se lamentando pela redução de seus lucros como que sugerindo que a economia importa, a vida não.

No Brasil em particular, o empresariado respalda um presidente (eleito) que diuturnamente não faz outra coisa que não destruir a capenga democracia brasileira. Uma personalidade que mostra nítidos sinais de uma síndrome catatônica e que é possuído de uma atração fatal pelo extermínio daqueles e daquelas que se lhes pareçam empecilhos em sua trajetória macabra e fascista de fazer do País uma terra arrasada. No rank do contágio e de vidas ceifadas pelo novo coronavírus, o Brasil ocupa o 2º lugar. Mesmo assim, o presidente eleito responde friamente e com desdém: “e daí?”

Até agora, a maioria do empresariado brasileiro foi incapaz de um gesto humano efetivo para frear a contaminação; ao contrário, a maioria tem agido nos bastidores para pressionar seus representantes pela volta do funcionamento da economia. <<A economia é vida!>>; é o que dizem. <<A economia é mais importante do que as vidas que movimentam esta mesma economia!>>; é o que gostariam de bradar.

Realisticamente, o cenário internacional e brasileiro não apresenta sinais de que a recuperação vá ocorrer como desejam, e nada garante que a normalidade de antes será recuperada. A doença pandêmica ainda não tem cura ou prevenção por vacina; sua dinâmica evolutiva ainda é desconhecida. O temor de uma segunda onda de contágio vai permanecer por algum tempo.

Embora tenha origem na Natureza, a doença causada pelo novo coronavírus transmutou-se em uma questão social. A pandemia mostrou e continuará mostrando por muito tempo as fragilidades dos sistemas de saúde de muitos países no que se relaciona ao atendimento da população das pessoas mais vulneráveis. A pandemia tem desvelado as desigualdades sociais e as consequências da mercantilização da saúde humana.

Pode-se dizer que o novo coronavírus é um capítulo importante da história da devastação de florestas em cujo final estará o alerta de que se repetirá com mais tragédias, logo que seja restaurada a normalidade da moderna sociedade produtora de mercadoria. A ciência e as inovações tecnológicas que respaldam as sociedades industriais modernas ainda têm muito a contribuir no processo de devastação e de degradação do ecossistema global; contribuir para a perda de habitats, extinção de espécies e proliferação de vírus ainda desconhecidos que hospedam.

Agora, o novo coronavírus desnuda a globalização e o ultraliberalismo. Também desnuda a divisão internacional do trabalho tal como se apresenta, que causa inseguranças e dependências externas que, cedo ou tarde, levarão a guerras pelo controle dos recursos naturais. Agora, um individualismo possessivo e exacerbado, represado, que acumula ímpeto para retornar ao ambiente social de normalidade que lhe dá condições de extravasamento, sempre com a preciosa contribuição dos mass media para que ninguém se sinta ‘excluído’.

À frente, a afirmação do “indivíduo social” (Karl Marx) como expressão de segurança e coesão social, tendo a solidariedade como a liga entre a autonomia individual e o livre funcionamento de todos os ecossistemas. Em suma, garantia dos direitos individuais subordinados aos interesses coletivos e aos direitos da Natureza. As desigualdades sociais e a degradação do ambiente natural não poderão mais ser ignoradas e suportadas. As discriminações de quaisquer tipos terão que ser eliminadas. As diferenças serão apenas de aparência e na maneira autônoma de pensar.

Com a afirmação do “indivíduo social”, eliminação das discriminações e das desigualdades sociais, a rivalidade entre as nações tenderá a desaparecer. Não haverá preconceitos, nem patriotismos, mas apenas a consciência de que habitamos a mesma casa comum. Em tal contexto social, o modo de vida terá que descartar o consumismo e o materialismo como meio para alcançar a felicidade. Nas sociedades modernas, a vontade de consumir leva a ansiedades, estresses, neuras, depressão, transtornos etc. É uma demonstração de que as relações sociais não podem ficar restritas ao status alcançado pelo poder de compra individual, mas sim ampliadas por formas de solidariedade e de ócio criativo. O moinho do hedonismo não pode prevalecer; o individualismo possessivo terá que dar lugar ao compartilhamento e à solidariedade.

À frente, a busca de condições de vida saudáveis e de uma distribuição equitativa dos bens comuns para a espécie humana, conjuga-se aos direitos da Natureza. Não se trata de um ideal utopista, uma vez que a motivação para essa busca emerge como uma necessidade vital.

Um desfecho para outra normalidade



A reflexão aqui apresentada pontuou alguns obstáculos estruturais e políticos que se interpõem a uma transição para outro modo de vida que considere os encaixes dos processos econômicos e da vida social na biosfera. Apesar de serem obstáculos, estimulam a luta por um modo de produção e de vida estruturado em bases ecologicamente adequadas e socialmente igualitárias.

O caminhar para além do capital é um processo ininterrupto e que, por isto mesmo, não pode ser obra de um segmento, classe ou movimento social isolado ou grupos radicais de discussão, por mais anticapitalista que seja a perspectiva e a pauta que orientam suas motivações e bandeiras de luta. Caminhar para além, significa ter a nítida compreensão de que o processo de superação da dominação social do capital coincide com a finalização da pré-história (ou da história de fetiches) para que se inicie a História da humanidade. Esta, uma história sem a marca antropocêntrica imposta pelo capital, mas com outra marca que tem a vida como centralidade e traz em seu âmago o princípio da prudência e da evolução harmoniosa entre homem e Natureza.

Esboçar outra normalidade, no entanto, exige o reconhecimento de que os limites ecossistêmicos são seus balizamentos biogeofísicos. A equidade social completa as condições para a sobrevivência da espécie humana.

O esboço aqui desenhado compõe, sobretudo, um ‘desfecho aberto’ que tem por objetivo apenas apresentar alguns princípios que poderão servir de orientação para a percepção de caminhos a serem caminhados com os faróis das experiências emancipatórias.

De partida, como já deve ter ficado claro, a nova sociabilidade é valiosa em si mesma, pois tem a marca de uma pedagogia crítica que aporta valores de vivências e de experimentações que a torna distinta da escala espaço-tempo do sistema do capital. Em seu âmbito reúne condições para eliminar discriminações e para incluir questões que falem de perto da necessidade vital de elevação da consciência ecológica planetária.

Nesse sentido – da elevação da consciência ecológica planetária –, um aspecto cruciante que não pode ser esquecido. Para que o valor-mercadoria seja ‘destruído’, (as)os produtor(as)es-associad(as)os, em todo o mundo, precisarão assumir o controle completo sobre a produção e a distribuição da riqueza, agora em novas bases. A perspectiva é o atendimento das necessidades humanas reais, dentro dos limites ecossistêmicos. Sem esquecer que as necessidades humanas reais correspondem a um constructo sociocultural dentro das condições biogeofisicoquímicas em que se desenvolverem os novos processos econômicos.

A autogestão com livre cooperação praticada pelos(as) produtor(as)es-associad(as)os e os fundamentos da Economia Ecológica, inspirados nas leis da termodinâmica, são princípios organizacionais voltados para estabelecer a unidade entre Nomos e Physis. Nesse sentido, a produção das condições materiais da vida estariam em consonância às leis que regulam os ecossistemas. A transversalidade e a universalização desses princípios tomariam a expressão de um processo educativo mais amplo voltado para a reprodução da vida em sociedade em direção a um futuro discernível.

A Economia Ecológica é afirmada como uma pedagogia crítica que contém princípios que servirão para orientar os novos processos de interação entre economia, sociedade e a Natureza; e a Economia Solidária, como modo de organização das atividades produtivas, em estreita articulação com os princípios ecológicos.

Outra questão a ser considerada tem a ver com as inovações tecnológicas proporcionadas pelo desenvolvimento das ciências. Como se sabe, historicamente os processos de inovação tecnológica adotados pelas empresas de porte levam à perda de importância do trabalhador com sua substituição parcial ou total pelas máquinas. Quase sempre, essas inovações antecipam sinais de que a venda da mercadoria força de trabalho se torna cada vez mais restrita. E quem não consegue um emprego (ou seja, vender sua força de trabalho) – quem não consegue ser “útil para o lucro” (Viviane Forrester) – é considerado(a) supérfluo(a) e jogado(a) em uma espécie de aterro sanitário social. A alternativa é a busca de ‘negócio próprio’ – que ganhou a pomposa denominação de “empreendedorismo” – ou do “trabalho informal” que surge nas ‘brechas’ do mercado não ocupado pela economia hegemônica.

A outra face não menos importante desse processo é que as inovações de processos e de produtos ampliam as agressões à Natureza. Mais ainda, em virtude do declínio da taxa de uso das mercadorias, tanto daquelas destinadas ao consumo das pessoas como das máquinas e equipamentos que são descartadas pela concorrência intercapitalista. Com a diminuição da ‘vida útil’ das mercadorias aumenta a produção de resíduos e rejeitos que degradam o ambiente. O mesmo acontece com as máquinas e equipamentos que são descartados. A imanência progressiva do subsistema produtor de mercadorias, a obsolescência planejada das mercadorias e a mercantilidade da Natureza compõem as condições objetivas que falam de perto da proximidade dos limites ecossistêmicos.

Que limites ecossistêmicos são esses e por que têm que ser reafirmados e respeitados? Evidentemente que são limites que estão ‘fora’ do subsistema econômico, mas que são a restrição implacável de seu funcionamento. (Uma lista de limites ecossistêmicos encontra-se em anexo.)

À medida que esse metabolismo social vai se estruturando e se consolidando, cria obstáculos que obnubilam a percepção de possibilidades que sejam vislumbradas como contrapontos ao modo como se estruturam as sociedades modernas. Estas, ao se tornarem um ambiente em que a economia funciona com ímpeto progressivo, ainda que destrutivo, contam, ao mesmo tempo, com uma superestrutura política, ideológica e repressiva, sintetizada no Estado, organizada para lhe atribuir legitimidade e eternidade. Qualquer estrutura diferente daquelas que estão organizadas e direcionadas para a maximização do lucro, e que se volte apenas para atender necessidades reais (individuais e sociais) será considerada inviável ou irrealista e com motivações utopistas (para não dizer comunistas).

A civilização moderna gira em torno de um círculo vicioso da produção pela produção. As inovações tecnológicas facilitam e aceleram a produção de mercadorias que são distribuídas por uma sofisticada logística que abarca o mercado mundial. Os liames deste mercado estimulam a produção de quantidades cada vez maiores de commodities. Ao mesmo tempo, para além das necessidades reais, cria-se uma série sem fim de necessidades artificiais, mas que acabam se tornando tão importantes quanto as necessidades primárias. O apetite do mercado mundial parece aumentar quanto mais for alimentado.

As vias da mundialização do capital são diversas. Os países do Norte global – que são tidos como centro da civilização – podem se utilizar da força e da fraude para ‘abrir’ mercados do Sul global, cujos países são muito desiguais, mas ainda dispõem de recursos naturais. Quando as potências do mundo civilizado cobiçam um país que ainda está livre de suas garras, e que dispõe de recursos naturais, inventam o pretexto da libertação do povo sofrido de uma ditadura sanguinária que sufoca sua liberdade de escolha, para impor o modelo de democracia que lhes favorece. Na realidade, esse processo estabelece outro ‘colonialismo’ pela via do comércio internacional. Cria-se um mercado, quebrando o modo de vida cultural das sociedades desses países, e destruindo o prazer de viver porventura nelas existentes. Com a inserção no mercado internacional, lhes são impostos novos produtos de que não necessitavam, em troca dos recursos naturais de que dispõem. As novas necessidades artificialmente criadas concretizam um processo de acumulação por espoliação (David Harvey).

Uma parte significativa das sociedades modernas está imersa
“... em um mundo em que tudo é mercadoria, em que se produz loucamente para se consumir mais loucamente, e se consome loucamente para se produzir mais loucamente. Produz-se por dinheiro, especula-se por dinheiro, mata-se por dinheiro, corrompe-se por dinheiro, organiza-se toda a vida social por dinheiro, só se pensa em dinheiro, cultua-se o dinheiro, este verdadeiro deus da nossa época – um deus indiferente aos homens, inimigo da arte, da cultura, da solidariedade, da ética, do amor. Um deus que se tornou imensamente destrutivo. E muito perigoso: a acumulação de riqueza abstrata é, por definição, um processo sem limites.” (César Benjamin)

Não falta quem afirme ou reverencie o ‘fim da história’, mas poucos fazem referência à redução da liberdade, a ameaças à democracia e à dilapidação dos bens comuns. Na realidade contemporânea, as instituições que compõem a superestrutura, incluindo-se o aparelho de repressão do Estado, são sistematicamente modernizadas para adaptar a democracia realmente existente aos “novo tempos”. A liberdade de cada indivíduo tende a ser vigiada por mecanismos de controle com a ampliação incontrolada das redes sociais e dos Big Data (Scientific American, 25Fev2017). São instrumentos utilizados para assegurar a pax de que necessita o capital para se reproduzir.

O pensamento único que impera na economia e na sociedade, e que faz a pregação do dogma do crescimento econômico ilimitado, corrobora o esgotamento da capacidade de suporte do ecossistema global, delimita a democracia e justifica a ampliação do aparelho repressor do Estado. A ofensiva ultraliberal vem cumprindo esse papel há cerca de 40 anos e transfigurando a realidade econômica, social, política e ambiental no mundo de maneira deletéria.

Os ‘pares’ mostrados no adendo a seguir, que estão longe de esgotar as transfigurações patrocinadas pelo ‘ecossistema’ do capital, são algumas ilustrações deste processo. Expressam facetas de um contexto econômico, social e político que põe a humanidade diante de uma enorme e desafiante complexidade.



O projeto do capital, assenta-se nos seguintes pilares: (1) apagamento do passado ou descarte das ancestralidades; (2) inovação tecnológica de processos e de produtos ou obsolescência programada; (3) produção midiática de espetáculos ou obnubilação da realidade; (4) mercantilização da vida ou ‘ter’ no lugar do ‘ser’; (5) pensamento único ou negação da liberdade de pensar uma “sociedade alternativa”; e (6) “não existe alternativa” ou “fim da história”. Tudo isso ocorre sob a alegação paralisante e terrorista de que se está diante de uma complexidade econômica, política, social e tecnológica que não pode ser modificada, mas apenas aperfeiçoada para que se faça cada vez mais da mesma maneira.

O que fazer diante de tal complexidade? Ainda que não existam respostas, conclusivas ou não, sobre o que fazer, é necessário formular novas e reafirmar questões já colocadas.

Antes, para mais bem compreender essa desafiante complexidade é necessário reafirmar que o sistema do capital não é uma ordem socioeconômica natural, espontânea, dirigida pela “mão invisível” imaginada por Adam Smith. Mas sim, resulta de ações humanas orientadas por uma lógica econômica que deixa como legado um enorme fardo para as futuras gerações na forma de dissociações e da dilapidação dos bens comuns.

Nesta ordem social e historicamente determinada, o Estado transfigura-se. Não para atuar como ente social que venha a corrigir e mitigar esse legado, mas sim, para disseminar a mercantilização da vida e anular obstáculos à livre movimentação dos capitais das corporações transnacionais. Em particular, eliminando aquelas regras que dizem respeito às conquistas sociais e individuais da população trabalhadora.

O Estado é sempre o principal apoiador desse sistema antivida. As vozes das personas influentes do capital sempre apelam para a força coercitiva do Estado – e não para a “mão invisível” – para facilitar a acumulação de sua riqueza. O Estado sempre foi, e ainda é, a ‘muleta’ e a ‘cadeira de rodas’ deste virulento sociometabolismo que ameaça a vida na Terra.

A sutileza dessa forma de ‘estatização’ da economia – e que proporciona garantias para a apropriação privada dos bens comuns – afirma-se com o Estado atuando como administrador do déficit público, de fornecedor de crédito e de outros incentivos, agente direto da produção em setores estratégicos, agente da repressão das lutas e dos movimentos sociais. A ‘legitimidade’ na democracia realmente existente é conquistada quando os candidatos aos cargos eletivos são vistos com confiança pelos mercados. E mais, quando demonstram o quão dispostos estarão em repassar para o setor privado o que ainda tiver conotação de público ou sob a responsabilidade do Estado.

No momento atual, com a terrível pandemia que atinge dramaticamente os segmentos mais vulneráveis da população em todo os países, o governo federal no Brasil, de maneira oportunista, tenta se ‘legitimar’ e ganhar a confiança da finança internacional tentando abrir os bens comuns ainda existentes nos biomas brasileiros à espoliação sem limites. Descaradamente, os atuais gestores querem se aproveitar da crise sanitária para resolver a crise econômica, afrouxando a legislação ambiental e a fiscalização que combate a devastação da Amazônia e da Mata Atlântica.

Os biomas brasileiros de há muito estão seriamente ameaçados de extinção. A pressão social, por enquanto, tem funcionado e impedido que esses crimes sejam perpetrados. Todo o esforço do governo federal no Brasil tem sido orientado para atender a expansão sem limites da economia capitalista global, abrindo as portas para mais corrupção, mais desgastes humanos e mais dilapidação dos recursos naturais e deterioração dos serviços públicos.

De acordo com as argumentações aqui elaboradas, o Planeta não reivindica salvação e a Natureza não está em crise. Na realidade, o sistema do capital está em crise permanente. Por isso eleva permanentemente os riscos e as ameaças à vida de todas as espécies que habitam a Terra. A humanidade já deveria estar mobilizada no sentido de retardar sua extinção. Se não conseguir evitar o ‘suicídio’, fará um inestimável favor aos ecossistemas e às espécies que se adaptarem às novas condições.

Assim, ... sortez du capitalism [sair do capitalismo], como sugere o título da obra de Hervé Kempf, é de vital importância para a humanidade. Rigorosamente, no entanto, não se trata de ... sauver la planète... [salvar o planeta], que é o complemento do título, mas sim sair do capitalismo para que o Planeta continue sendo nossa casa comum por mais tempo.

Diante de tal diagnóstico, que prognósticos podem ser apontados? Seria possível mudar de um tipo de capitalismo para outro de modo a garantir condições de vida ecologicamente sustentáveis para as atuais e futuras gerações? É possível amoldar o desenvolvimento capitalista ao tão decantado “desenvolvimento sustentável”? É possível um capitalismo verdoengo? De acordo com as argumentações elaboradas ao longo desta reflexão, a resposta é NÃO.

Georgescu-Roegen, ao analisar as inter-relações entre a lei da entropia e o processo econômico, lançou suas bases para pensar outra economia. No lugar de uma economia comandada pelas forças cegas do mercado, propõe outra forma de organização social e política para resolver o problema econômico central, qual seja, o que, como e para quem produzir. Sua concepção de Bioeconomia pressupõe uma profunda mudança no modo de ser da economia e no modo de viver em sociedade. É uma concepção que vincula a evolução biológica do processo econômico e a existência da humanidade, a um estoque limitado de recursos acessíveis, desigualmente localizados e desigualmente apropriados.

A denominação Bioeconomia (Bioeconomics em inglês) cunhada por Georgescu-Roegen sugere que a vida assume a condição de centralidade e, por isso, a necessidade de uma mudança cultural profunda. Em sua argumentação, a base tecnológica e energética hoje predominantes terá que ser redefinida. Uma tecnologia só poderá ser considerada ecologicamente viável se for capaz de dar suporte aos estoques (fundos) de matéria e energia e garantir os fluxos de serviços e as funções ecossistêmicas vitais para a diversidade das espécies.

Nesse sentido, as tecnologias de reaproveitamento (reuso) e de reciclagem ganham importância relativa e as fontes renováveis de energia, importância absoluta. Mais ainda, as práticas pertinentes às chamadas “tecnologias sociais” na produção de alimentos e de outros insumos básicos, particularmente as técnicas agroecológicas e os processos que levam à soberania hídrica, ganham importância vital.

Como a Terra é materialmente limitada, o programa bioeconômico mínimo de Georgescu-Roegen reforça a ideia de decrescimento. O quadro de vida sugerido pelo movimento social do decrescimento induz à percepção do lugar em que cada um e cada uma atua. Induz à mais bem compreender as experiências ancestrais e a produzir novos conhecimentos e saberes. Por fim, no lugar das forças cegas do mercado, instiga a adoção de outros princípios para orientar as ações humanas.

De modo geral, o decrescimento é um desafio à hegemonia do crescimento (Federico Demaria et al). Propõe uma redução da produção e do consumo nos países industrializados e crescimento da produção de alimentos nos países mais pobres, como um meio para alcançar sustentabilidade ambiental, justiça social e bem-estar para todos.

O movimento do decrescimento inclui ativistas anticarro e antipropaganda, aqueles e aquelas que fazem campanhas em defesa dos direitos de ciclistas e dos pedestres; aqueles e aquelas que adotam e disseminam as práticas agroecológicas de cultivo; que são críticos da expansão do urbanismo capitalista; os defensores da energia solar e de moedas locais; e assim por diante. Em resumo, o decrescimento é um quadro de vida apropriado a visões de mundo que tem a vida como centralidade.

Ademais, o decrescimento vai além de um conceito econômico no sentido mais estrito. Por um lado, o decrescimento propõe a redução do transumo que resulta em matéria degrada e energia dissipada. A redução atende às restrições biofísicas do Planeta, à disponibilidade de recursos naturais e à capacidade de assimilação de resíduos pelos ecossistemas. Por outro lado, o decrescimento desafia a primazia das relações sociais orientadas pelo mercado e a cegueira do imaginário social de que o crescimento poderá prosseguir indefinidamente apoiado na ideia de abundância. Finalmente, o decrescimento chama a atenção para a necessidade de uma distribuição equitativa da riqueza dentro dos países e entre o Norte e Sul Global, bem como entre as gerações presentes e futuras.

A partir de Georgescu-Roegen, percebe-se que a expansão da economia corresponde à evolução biológica da humanidade sob a forma de órgãos exossomáticos. As inovações tecnológicas que possibilitam a ampliação desses órgãos, contudo, leva ao crescimento da entropia, o que encurta o prazo para que os limites biofísicos do Planeta sejam alcançados. Além do aumento da utilização de recursos renováveis a uma taxa superior à sua renovação, ou pelo esgotamento dos recursos não renováveis, o crescimento econômico reduz a capacidade de suporte dos ecossistemas. Daí a necessidade de tecnologias que não esgotem os estoques não renováveis, não acelere a taxa de utilização dos recursos renováveis e não asfixie a capacidade de absorção de resíduos do Planeta.

O programa bioeconômico mínimo elaborado por Georgescu-Roegen tem como pressuposto o conceito de “viabilidade ecológica”. Leva em consideração “não só o destino de nossos contemporâneos, mas também o das gerações futuras” (Nicholas Georgescu-Roegen), e aponta para uma nova ética que “não engane os outros com ideias que escapam do poder da ciência dos homens” (Idem). Essa é a ilusão que o ideário ultraliberal transmite; a ideia de que “I am the way”. Traduzindo: cada um sabe o que é melhor para si e que um dia irá alcançar tudo o que deseja.

O programa bioeconômico mínimo de Nicholas Georgescu-Roegen contém oito recomendações que, em sua concepção, levará a sociedade humana a um caminho discernível:

1-Cessar a produção de armamentos e realocar os recursos liberados dos países desenvolvidos para ajuda internacional humanitária e propósitos construtivos.

2-Ajuda imediata às nações subdesenvolvidas.

3-Decréscimo gradual da população até um nível em que a agricultura orgânica seja suficiente para alimentá-la convenientemente.

4-Evitar todo e qualquer desperdício de energia e, se necessário, regulamentar o excesso de aquecimento, de climatização, de velocidade, de iluminação, enquanto o uso de energia solar não estiver implantado e a fusão nuclear não estiver controlada.

5-Abandonar nossa mania por engenhocas (extravagant gadgetry) de modo a induzir os fabricantes a deixar de produzir tais extravagâncias.

6-Abandonar a moda, evitar a obsolescência/descarte e mudar o foco para a durabilidade.

7-Além da durabilidade, os bens terão que ser passíveis de conserto a fim de ampliar mais ainda sua durabilidade.

8-No lugar de estimular a produção de bens que permitam fazer as coisas cada vez mais rapidamente, devemos nos curar desta síndrome e nos acostumar com a ideia de que uma existência digna de ser vivida tem como pré-requisito hábitos que permitam o uso inteligente do tempo como lazer criativo.

Apesar de pontos desejáveis e aceitáveis, o programa bioeconômico de G-R certamente encontrará inúmeras reações e inúmeros obstáculos. Apenas para salientar, a principal objeção seria a de que, adotar essas medidas implicaria reduzir o conforto material que a economia oferece à população, mesmo que a maioria não tenha poder de compra para alcançá-lo. É uma objeção que explicita o dilema entre uma vida curta, mas excitante e extravagante, e uma vida mais longa, seguindo o ritmo das leis da Natureza. As espécies ditas irracionais, certamente ‘escolheriam’ esta segunda opção.

Evidentemente que o apelo contido nas recomendações clama por mudanças profundas de valores. Em particular, sugere que as decisões sejam tomadas com base no fato de que a matéria e a energia hoje disponíveis para a humanidade devem ser racionalmente utilizadas e inteligentemente conservadas para atender às necessitadas das gerações atuais e futuras. As mudanças contidas no Programa têm por preocupação as implicações biológicas, climáticas, econômicas, políticas e sociais potencializadas pelo modo de produção e de vida vigente. Além do apelo ético à vida e às gerações futuras.

Claramente, o fundamento objetivo do sistema de valores proposto é a finitude material do Planeta e a fragilidade da “teia da vida” que envolve a espécie humana. As imensas desigualdades que se distribuem desigualmente pelo mundo e o mantra (a panaceia) do crescimento econômico ilimitado, também servem para jogar por terra o apelo midiático para manter o padrão (o conforto) material de vida prevalecente. Simplesmente porque jamais será alcançado pela totalidade de quase 7,8 bilhões de pessoas que habitam a Terra neste momento.

Vale observar que as mudanças sugeridas por Georgescu-Roegen estão voltadas para a melhoria das condições de vida das gerações atuais e a manutenção de condições semelhantes para as gerações que virão. O que não é uma tarefa simples, diante da complexa estrutura tecnológico-informacional e financeira que respalda o modo de produção e de vida das sociedades modernas. Nessas sociedades as inovações tecnológicas têm possibilitado uma profusão de órgãos exossomáticos que colonizam os bens comuns e a subjetividade das pessoas para dar vazão à reprodução ampliada do capital.

Com uma matriz de valores que tenha a vida como centralidade, a utilização desses órgãos exossomáticos teria que ser reorientada. Talvez por isso, as propostas contidas nesse “programa mínimo” sejam descartadas como irrealistas e injustificadas. O que seria um absurdo.

Mas, apesar da complexidade apontada, por que, então, vale a pena insistir na necessidade de uma profunda mudança de valores?

A Bioeconomia de Georgescu-Roegen, ao reconhecer os impactos ambientais de todo e qualquer processo econômico, sugere que todas as decisões no âmbito da economia sejam balizadas pela minimização da entropia, ou seja, que priorizem a conservação da biodiversidade e os serviços ecossistêmicos. Isso significa dizer que a eficiência econômica deverá ser subordinada à sustentabilidade ecológica. Desse modo, a Bioeconomia fundamenta-se na inextrincável relação entre biodiversidade e serviços ecossistêmicos para sobrepor os valores da Natureza aos valores econômicos do mercado.

Uma objeção que não pode ser feita é interpretar o programa de G-R como um ideal ‘utopista’. Ao contrário, deve ser entendido como um momento necessário de evolução da humanidade para além da história transcorrida até o momento. Mais ainda, como um contraponto ao poder destrutivo potencializado por uma racionalidade econômica que se apresenta como fim em si mesma. E mais, uma ordem sistêmica cujos princípios se impõem independentemente da vontade e da livre manifestação individual e social. Contraditoriamente, um sistema movimentado por indivíduos cujas ações são direcionadas para a reprodução social dessas mesmas estruturas e para o aprimoramento de suas leis de funcionamento.

Diante da irreversibilidade de processos entrópicos que degradam as condições de vida da totalidade das espécies, a Bioeconomia sugere precaução. Essa é mais uma condição necessária para repensar o futuro da humanidade. Também sugere que a economia deve evoluir como um organismo social dentro dos limites biofísicos da Terra: o que será produzido e como será produzido são decisões a serem balizadas por estes limites. São questões que não podem ser resolvidas pelo mercado, pelo critério da máxima rentabilidade, mas sim, por mecanismos democráticos de tomada de decisões. Para quem produzir, é outra questão a ser resolvida por esses mesmos mecanismos de participação direta dos reais interessados, uma vez que está relacionada ao atendimento de necessidades humanas reais que são social e culturalmente determinadas.

O dogma do crescimento econômico ilimitado e os mitos do desenvolvimento científico-tecnológico são utilizados para afirmar que a humanidade chegou ao “fim da história” e que “não há alternativa” ao modo de produção e de vida que prevalece nas sociedades modernas. Assim, esta ‘obra magna’ da humanidade terá que ser venerada per omnia saecula saeculorum.

A busca permanente da maximização de lucro estimula o crescimento econômico ilimitado. E daí, o consumo ilimitado de matéria e energia disponível no Planeta. Por outro lado, as compras (consumo das famílias) terão que ser permanentemente estimuladas e novos produtos lançados no mercado. As estratégias de obsolescência programada e psicológica são acionadas; a vida útil das mercadorias deliberadamente encurtada. Os mecanismos midiáticos de estímulos induzem as pessoas a um comportamento que as leva a comprem cada vez mais. Segundo Harari (2017, p. 360), esse sinistro ‘ecossistema’ “é a primeira religião na história cujos seguidores realmente fazem o que se espera que façam.”

O quadro da Bioeconomia de Georgescu-Roegen proporciona a percepção de que os ecossistemas são valiosos em si mesmos. Não há como atribuir um valor monetário aos serviços fornecidos pela diversidade das espécies e para todas as espécies. Ao tempo em que não há como conciliar as leis que regem os ecossistemas e os sistemas de preços que governam os processos econômicos nas sociedades modernas. Não há como desacoplar, por exemplo, os colapsos ambientais causados pela expansão da indústria, da monocultura e da pecuária industrializadas e da mineração. Todos são sistemas significativamente entrópicos; todos são sistemas que correspondem a processos lineares por onde fluem matérias extraídas dos ecossistemas que são posteriormente transformadas em resíduos e contaminantes sólidos ou líquidos.

Em tal complexidade, o decrescimento emerge como bandeira política de um movimento social que denuncia a ruptura sociometabólica causada pela racionalidade econômica que predomina nas sociedades produtoras de mercadorias. A bandeira do decrescimento é uma síntese que contribui para disseminar uma nova visão de mundo. Assim, o decrescimento pode ser entendido como uma pedagogia que orienta a luta social pela preservação dos ecossistemas.

A Bioeconomia, por sua vez, afirma-se como fundamento para as dimensões econômica e ecológica do decrescimento. Pode ser interpretada como como um conhecimento que fornece fundamentos para integrar as ações do homo sapiens com as leis que orientam os ecossistemas. Nesse sentido, preserva os direitos da Natureza com a finalidade de garantir o atendimento de necessidades humanas reais, social e culturalmente definidas.

O decrescimento questiona o dogma do crescimento econômico ilimitado e o mito da inovação tecnológica como panaceia para os problemas econômicos e sociais contemporâneos. A vida ganha centralidade para extirpar o mantra ‘trabalhar mais, para ganhar mais e comprar mais; produzir mais para vender mais e ganhar mais’.

O movimento do decrescimento e a Bioeconomia de Georgescu-Roegen propõem uma nova utilização das energias humanas para atividades criativas e socialmente produtivas. Uma utilização voltadas para a construção de um mundo ecologicamente orientado e substantivamente democrático e igualitário. Essa mudança rumo é urgente para alcançar uma prosperidade genuína para a humanidade que vale sempre enfatizar.

Mas, de acordo com a reflexão aqui elaborada tal mudança de rumo exige, antes de tudo, o entendimento do significado de falha ou da ruptura metabólica que resulta da apropriação privada dos bens comuns e de sua transformação em resíduos. Uma ruptura ainda mais acentuada pelo comércio internacional entre os dois hemisférios, atualizando os argumentos inerentes à histórica troca desigual no sentido de que agora é uma troca ecologicamente ‘desigual’, mais uma vez, em nome das chamadas “vantagens comparativas”.

A colonização do mundo com a diferenciação entre países que exportam bens primários daqueles que exportam tecnologias, máquinas e equipamentos, expressa o processo de esgotamento de recursos naturais dos países situados no hemisfério Norte global. Essa troca desigual é um processo que chama a atenção para os profundos impactos biofísico-químicos em que se concretiza a acumulação de capital. Um processo que ocorre, nitidamente, à base da espoliação dos ecossistemas dos países ditos emergentes e daqueles ainda mantidos na condição de periféricos. Esta é a marca contemporânea da busca dogmática e dramática do crescimento econômico ilimitado dentro da finitude da Terra.

Desmistificar o culto do crescimento econômico ilimitado, ampliar a luta contra a mudança climática e propugnar pela transição energética são pontos importantes que podem contribuir para a compreensão das ameaças que pairam sobre a vida das espécies que habitam o Planeta.

O imaginário coletivo também precisa ser descolonizado (DILGER, Gerhard et al.). Para isso é interessante desenhar um cenário que aponte para perspectivas de um futuro incerto para os descendentes de segmentos médios da pirâmide social; um futuro em que, mantida a atual trajetória, o padrão de vida terá que ser forçosamente reduzido. Um cenário que sirva como um ingrediente capaz de provocar uma reflexão que leve à elevação da consciência ecológica crítica e estimule a vontade de postergar nossa existência na Terra. Mais ainda, que deixe claro que a minoria que ocupa o topo da pirâmide social se beneficia dos ‘desastres’ e acumula mais riqueza.

O contraponto à sociabilidade prevalecente terá que ser, necessariamente, orientado por princípios ecológicos como uma marca pedagógica crítica. Certamente não é uma empreitada simples, pois exigirá intensos debates e lutas sociais de amplitude mundial que envolvam todos os segmentos sociais dispostos a detonar as desigualdades históricas e eliminar os riscos que ameaçam a existência da humanidade no futuro próximo.

Em particular, os movimentos sociais que se estruturam com a perspectiva da emancipação humana – contra todos os tipos de discriminação e de injustiças, e que reconhece os limites ecossistêmicos – reúnem um potencial mobilizador de forças sociais e políticas capaz de enfrentar a correlação de forças avassaladora que ameaça a vida humana. Tudo indica que estamos diante de um problema incontornável. Como não há como enquadrar os processos econômicos das sociedades modernas nos limites ecossistêmicos, torna-se necessária a instrumentalização de todas as pessoas com fundamentos ecológicos e de justiça social e ambiental.

A economia terá que ser ecologicamente orientada para processos regenerativos, mínimos efeitos entrópicos e produção de alimentos em moldes agroecológicos.

A ciência e a tecnologia terão que ser reorientadas: baixo carbono e produção de bens com longa durabilidade. Ciência experimental criativa e resgate do saber ancestral acumulado pela humanidade.

O tempo dedicado às atividades produtivas terá que ser reduzido a um mínimo de modo que uma parte do tempo seja dedicada à formação científica e tecnológica.

A redução do tempo dedicado à produção cria condições para que se tenha um modo de vida orientado para o ócio criativo e para o desenvolvimento de atividades superiores.

As pessoas terão possibilidades de serem outras: cuidados com o ambiente natural, formação artística e exercícios físicos para uma vida saudável.

A finalidade da nova organização econômica e social, portanto, seria maximizar o tempo disponível para o ócio (ativo e não receptivo) a ser usufruído por cada um e por todos os indivíduos: o tempo de vida, e não o tempo de trabalho, seria visto como o momento de afirmação humana e a medida da riqueza. As relações sociais reificadas dariam lugar a uma existência emancipada do trabalho alienado.

Nessa nova organização, o pressuposto crucial é que cada espécie desempenha um papel vital para manter a Terra na condição de nossa capa protetora. A espécie humana como centro da autoconsciência terá que agir para assegurar que seus modos de vida sejam consentâneos a essa condição. Por esse caminho, a causa que muitos consideram utopismo será triunfante. E deixará claro que a aparente liberdade e a ilusão de que todas as pessoas alcançarão a felicidade pela via do consumismo, tem por contrapartida a servidão de muitos e o privilégio de poucos. Uma causa sem esperança.

A dominação econômica e social que é típica de uma normalidade “infeliz de prazeres perdidos e de esperanças carregadas de medo” (William Morris), daria lugar à riqueza da vida no lugar de uma vida de riquezas.

Anexo - Limites Planetários



1) Concentração de GEE

Os Gases de Efeito Estufa são compostos gasosos capazes de aprisionar calor na atmosfera. Aproximadamente 30% da radiação solar que atinge a Terra é refletida de volta para o espaço; os 70% restantes, a maior parte é absorvida pelo solo e pelos oceanos e uma fração residual é absorvida pela atmosfera. Os GEE mais relevantes são: vapor de água (H2O), dióxido de carbono (CO2), metano (CH4) e óxido nitroso (N2O). O CO2 é emitido em processos de combustão, como são os motores e as caldeiras. É o mais relevante e se origina da queima de combustíveis fósseis como carvão mineral, o gás natural e o petróleo. Seu tempo de permanência é de no mínimo cem anos, resultando em impactos no clima ao longo de séculos. O desmatamento é a segunda principal atividade responsável pelas emissões, seguido das atividades industriais. O CH4 é principalmente originado de processos biológicos, como o tratamento de efluentes líquidos, de aterros sanitários e das atividades agropecuárias, principalmente da criação de ruminantes. A extração e o refino de petróleo também são fontes importantes emissoras de metano. Outras atividades que geram metano são a produção de arroz e a queima de biomassa. A quantidade de metano emitida para a atmosfera é bem menor, mas seu potencial de aquecimento é vinte vezes superior ao do CO2. O óxido nitroso (N2O) é emitido de processos industriais e da agricultura. Na indústria, pode ter origem, por exemplo, na produção de ácido adípico (empregado na fabricação do náilon) e de alumínio. Na agricultura, tem origem na utilização de fertilizantes. Ainda, emissões de N2O também resultam dos sistemas de tratamento de esgoto. No caso do óxido nitroso, sua concentração na atmosfera é menor, mas sua capacidade de reter calor é de 310 a 7.100 vezes maior do que do que o CO2.

2) Mudança climática

O aumento da temperatura média do Planeta tem elevado o nível do mar devido ao derretimento das calotas polares, podendo ocasionar o desaparecimento de ilhas e cidades litorâneas densamente povoadas. Aumenta a possibilidade de ocorrência de eventos climáticos extremos (tempestades tropicais, inundações, ondas de calor, seca, nevascas, furacões, tornados e tsunamis) com graves consequências para populações humanas e ecossistemas naturais, o que pode reduzir a biodiversidade com a extinção de espécies de animais e de plantas. As mudanças climáticas podem ter causas naturais como alterações na radiação solar e dos movimentos orbitais da Terra ou podem ser consequência das atividades humanas. O Painel Intergovernamental de Mudanças Climáticas (IPCC) afirma que há 90% de certeza que o aumento de temperatura na Terra esteja sendo causado pela ação do homem. Desde a Revolução Industrial, a concentração original de 280 ppm de CO2 aumentou para quase 410 ppm, elevando a temperatura média da Terra em 1,02 grau Celsius, de janeiro a setembro de 2017. Por esta via, as atividades humanas passaram a ter influência importante nas mudanças climáticas. Dentre os principais fatores que causam o aquecimento global (e consequentemente as mudanças climáticas), está a queima de combustíveis fósseis (derivados do petróleo, carvão mineral e gás natural) para geração de energia, atividades industriais e transportes; mudanças do uso do solo; agropecuária; descarte de resíduos sólidos (lixo) e desmatamento. Todas estas atividades emitem grande quantidade de CO2 e de outros gases formadores do efeito estufa.

3) Perda de biodiversidade

Biodiversidade ou diversidade biológica corresponde à Natureza viva. O termo tem sido amplamente utilizado por biólogos, ambientalistas, movimentos sociais, líderes políticos, no mundo todo. Esta ampliação coincidiu com a constatação da extinção de espécies nas últimas décadas do Século XX. A biodiversidade refere-se à imensa variedade genética dentro das populações e espécies, desde a flora, a fauna, fungos macroscópicos e microrganismos, e a diversidade das funções e serviços ecossistêmicos prestados por estes organismos em seus hábitats. A variabilidade é vital para a sobrevivência da espécie humana. Dentre os principais fatores que afetam a biodiversidade situam-se a chuva ácida, depleção da camada de ozônio, mudança climática, urbanização, destruição de habitats, degradação de ecossistemas oceânicos, florestais e terrestres; uso indiscriminado de compostos químicos artificiais, como fertilizantes e pesticidas, cujos efeitos colaterais são desconhecidos e podem ter uma variedade inimaginável de impactos sobre o solo e a vida em todo o planeta. A biodiversidade favorece à fertilidade do solo, fornece polinizadores, decompositores de resíduos e serviços ecossistêmicos igualmente vitais como purificação do ar e da água, regulação do clima, controle de inundações dentre outros serviços.

4) Poluição química

A contaminação do solo e da água gerada por produtos químicos tem na atividade industrial seu principal causador intencional. Regra geral, muitas indústrias despejam produtos químicos em rios, lagos ou diretamente na rede de esgoto da cidade sem qualquer tratamento. Na zona rural, a contaminação do solo é causada pelo uso excessivo de pesticidas e de adubos químicos. A poluição química compromete a possibilidade de vida nos rios e lagos contaminados com a destruição de habitats. Produtos tóxicos minerais: sais de metais pesados; sais minerais; mercúrio; ácidos; chumbo; álcalis. Produtos tóxicos orgânicos: fenóis; hidrocarbonetos; detergentes.

5) Uso de água doce

A água é um recurso natural renovável abundante, que ocupa aproximadamente 70% da superfície do nosso planeta. No entanto, 97% desta água é salgada; menos de 3% é doce, mas 2,5% estão em geleiras. O 0,5% de água restante no mundo está presa em aquíferos subterrâneos, dificultando o acesso humano e somente 0,04% encontra-se disponível na superfície, em rios, lagos, mangues. A maior parte da água doce no mundo (cerca de 70%) é utilizada para irrigação e outros fins no setor de agricultura. A indústria utiliza cerca de 22% da água e o uso doméstico cerca de 8%. Em países industrializados, este quadro muda um pouco, com mais água alocada na indústria e menos na agricultura. No Brasil, em 2015, 72% da água são utilizados na agricultura e 9% para a pecuária; 6% na indústria; e 10% para fins domésticos.

6) Mudança no uso do solo

As mudanças do uso do solo e o desmatamento são responsáveis por emissões de gases de efeito estufa. Isto porque as áreas de florestas e os ecossistemas naturais são grandes reservatórios e sumidouros de carbono por sua capacidade de absorver e estocar CO2. Mas quando acontece um incêndio florestal ou uma área é desmatada, esse carbono é liberado para a atmosfera, contribuindo para o efeito estufa e o aquecimento global. As emissões de GEE da agropecuária também vem aumentando proporcionalmente ao crescimento da atividade.

7) Acidificação do oceano

A acidificação ocorre em função da diminuição do pH nos oceanos, causada pelo aumento do gás carbônico atmosférico (CO2), que se dissolve na água alterando seu equilíbrio químico. Desde o início da Revolução Industrial, quando as emissões de carbono iniciaram uma rápida escalada, o pH da superfície oceânica diminuiu cerca de 0,1 na escala logarítmica do pH. Representa um aumento de cerca de 26% na concentração de íons hidrogênio H+ causadores diretos da acidificação. A elevação dos níveis de CO2 na atmosfera tem origem na queima de petróleo, gás natural, carvão mineral, betume e outros e no desmatamento. A elevação da concentração do gás e a consequente modificação do pH dos oceanos desencadeia importantes consequências negativas para a vida marinha e, por extensão, para a sociedade, uma vez que grande parte dos alimentos para consumo humano têm sua origem na biodiversidade marinha.

8) Depleção da camada de ozônio

A camada de ozônio funciona como uma espécie de escudo de proteção da Terra, diminuindo o efeito das radiações ultravioletas ao absorver até 99% delas. Os gases lançados na atmosfera contribuem para reduzir essa camada de proteção. A exposição em excesso às radiações UV causa danos acumulativos e irreversíveis aos olhos, à pele e ao sistema imunológico humano.

Aécio Alves de Oliveira

aecioeeco@ufc.br

Recente divulgamos aqui outros dois artigos do autor, intitulados "O coronavírus e a economia no Brasil: quais opções?" e O coronavírus e a economia: quais caminhos? (Parte II)




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