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29 dezembro, 2015

A criança do Siará numa Coréia desse Sul

Para terminar este infausto 2015, um ótimo e instigante texto do Felipe Franklin Neto refletindo sobre o turismo predatório no Ceará, a relação dos estrangeiros com os locais e muitas outras coisas. Vale a pena.



Essa República da Coréia do Sul instalada no Ceará já deu e ainda vai dar muito o que falar. Hoje, essa certeza calou uma grande preocupação no fundo da minha alma. Foi logo depois de ouvir o grito de um dono de restaurante coreano numa criança de rua de 10 anos na praia do Cumbuco. A violência e o destempero da situação contou - evidentemente - com minha reação à altura.

O espectro é grande. Vai dos escandinavos nos esportes náuticos ( Kite e Wind, por exemplo) - que têm - às vezes, a decência de aprender o Português - algo que não é prática corriqueira entre essa moçada - aos chineses, à lá " R$ 1,99", envolvidos no comércio de produtos populares espalhados nos centros das cidades desse país inteiro, mundo afora. Sob o risco da generalização, fico imaginando onde essa marmota diplomática vai parar.

Portanto, não vou comentar a importância das contribuições sociais e políticas da Cultura desses países em nosso meio. Isso já foi exercitado demais. Menos geral e abstrato, vou me restringir às situações concretas. Algumas poucas delas, em tantos anos. As memórias foram ativadas por esse acontecimento de hoje. Uma lembrança de momentos cotidianamente vivenciados e experienciados. Momentos de osso, de carne e de sangue. Lágrimas, suores. Gargalhadas, algazarras. Sorrisos. Tréguas. Emoções. Sensações, sentimentos. Percepções. Confusões. Brigas. Discussões. Momentos da vida. Delicados. Intensos.
É que a intensidade e o anonimato violento dessas situações cotidianas não pode ser naturalizado. Não deve ser menosprezado. Não podemos reproduzir discursos e práticas colonizadoras em tempos pós-modernos. Nem com os de "fora". Tampouco com os de "dentro". Um e o outro são difíceis de definir nos tempos e termos da mundialização financeira do Capital. Difíceis. Não impossíveis.

Ainda assim. Sei não. Sinceramente. Não sei.
Como é possível que um "turista" converse horas, dias, meses, anos a fio apenas e tão somente em seu idioma natal, menosprezando a cultura local? Como é possível que ele não demonstre em NENHUM momento QUALQUER interesse em entender ou conhecer, PELO menos, as expressões idiomáticas mais corriqueiras do país visitado: "Como vai?", " Obrigado", etc. Como é possível que esse mesmo turista deboche, não da sua deselegância, mas da "ignorância" educacional e linguística da " nativa"? Que ele deixe essa " nativa" literalmente "de boréstia"? Assim, na maior. À disposição. Aberta aos chiliques do Capital personificado ali, naquela tragicomédia.
Trata-se ou não de uma violência cultural? Enquanto houver hesitação, há espaço, pelo menos, para a reflexão. Agora, multiplique aí essa experiência aos milhares. Mesas e situações como essa vivenciadas todos os dias. Há décadas. O silêncio e o olhar evasivo dessas vítimas durante esses monólogos ensurdecedores já me ilustraram demais esse argumento.

Nada disso tem a ver com xenofobia. Nem poderia. Sendo brasileiro; inimaginável seria uma contradição desse nível. Por temperamento e experiência familiar, convivo com estrangeiros e sou miscigenado desde a mais tenra idade. Não. Não é de xenofobia que se trata. É de uma violência simbólica e cultural que vem se capilarizando há muito tempo na estrutura e no imaginário dessas localidades que se fala. Fui o único a me insurgir no restaurante.
O dono gritou pro garçom que mandou a criança vazar da mesa em que estava sentada. O delito: nenhum. A suposição: poderiam achar que a criança estava bebendo algo alcóolico. Não estava. Algumas pessoas da mesa concordaram com a estabanada advertência.
Quatro são as opções de leitura. A primeira: o coreano gritou por conta do receio de ser " advertido" e " multado" pelo Poder Judiciário. A segunda: pegando carona no agá do coreano e do garçon, algumas pessoas da mesa aderiram e concordaram com a violência cometida contra a criança por medo de serem enquadradas pelo Judiciário. A terceira : tudo isso ocorreu pelo execrável preconceito contra uma criança de rua. A quarta e última: pelo medo desse incidente atrapalhar as vendas do restaurante. Sendo todas as quatro opções igualmente covardes e hipócritas, fico com a quarta. A terceira é a cereja desse bolo perverso. Ela é a mais tentadora e verossímil dessas cínicas alternativas. Sendo ou não uma "criança de rua", era uma criança. Não poderia, em hipótese alguma ser destratada daquela forma. O gesto de retraimento e o pulo que aquela criança deu da mesa após ser tão acintosamente desqualificada, vão perdurar muito tempo na minha memória. Eu estava saindo do restaurante quanto aconteceu o que descrevo. Não aguentei, voltei e também escrachei: quem cometeu desagravo com aquela criança, ouviu. Sou cordato. Mas não tenho sangue de barata. Nem sou de ferro.
Criminalizar o comportamento de uma criança é muito fácil e oportuno. São os suspeitos de sempre.

Creio ser despropositada a hipótese da " romantização" da infância e da adolescência no Brasil. É que a " demonização" da infância e da adolescência, não é um exato oposto dessa romantização. Um exemplo simples pode colorir melhor essa suposição : os grupos de interesse envolvidos nessa contenda têm acesso francamente desigual ao " Poder" e ao " Capital". Os grandes proprietários de bancos, de canais de televisão, de emissoras de rádio e de jornais defendem qual das duas teses? Em contrapartida, os movimentos sociais de trabalhadores e entidades que lidam com meninos de rua e com a infância e a adolescência se posicionam de que forma nesse debate ?

Nenhum debate sincero e transparente frente à Opinião Pública pode ressoar de forma consistente nessas premissas. Mas não creio ser prudente relativizar. No que diz respeito ao mundo da criança e do adolescente, levo mais em consideração quem vive com esses segmentos, do que quem especula no mundo das finanças.

Não fosse tão arriscado, dava quase para resenhar: a tese da romantização é normalmente defendida por quem é pobre ou pertence aos setores da classe média socialista, e liberal " progressista"etc. Já membros da classe média conservadora e os ricos tendem a defender mais os argumentos da tese da demonização. O mundo, porém, é mais complexo. Ainda bem, nesse caso. Há muitos grupos e indivíduos políticos nesse país que não suportam essa mania de polarização. É muito provável que desenvolvam teses mais radicais sobre o tema. Teses que desconstroem e subvertem muito do que é "parlamentado" por aí. Passam ao largo dos bastidores e de palcos dos autointitulados " donos" do poder .

Aqui o Bem não luta contra o Mal. No mundo do Capital, essa questão está além do bem e do mal e de todos os oportunismos e imediatismos que o rodeiam. Num país violento e desigual como esse, é a criança o elo mais frágil dessa sociedade adultocêntrica.
Fundamentei essa percepção ao morar numa fazenda no norte do Paraná, entre uma aldeia indígena Kaingang e um assentamento do MST. O projeto tinha como objetivo maior não lidar, mas VIVER junto aos " jovens em conflito com a lei". Portanto, não falo de fora. E mesmo se fosse: qual seria o problema?

Digo isso porque alguns cínicos e oportunistas adoram aproveitar situações de desespero e pânico para vangloriar e glorificar máximas imediatistas do tipo " Redução da Maioridade Penal". Só quem desconhece a situação do Brasil pode defender uma atrocidade dessas. O que presenciei no Cumbuco é um exemplo cotidiano e claro do que essa judicialização e essa criminalização pode gerar. São essas experiências pessoais e essas situações de embate, de impasse e de diálogo que atravessam todo esse arcabouço. Por isso é importante conversar sobre elas.

Sobre a relação entre o que vivi na Praia de Iracema, no Paraná e no Cumbuco, é o seguinte: ao longo da minha vida já presenciei e vivi algumas situações de " assalto", de " roubo" e de " latrocínio" no meu cotidiano civil. Decerto em nenhumas dessas situações houve tempo e espaço para fazer uma reflexão mais apurada e detalhada sobre o que estava acontecendo. Mais do que certo, , nessas inúmeras situações, tentar algo parecido com isso seria totalmente descabido. Se o faço agora é justamente pra reforçar uma teoria e uma prática de existência. Ainda nos sobra muita poesia e alegria nesses tempos difíceis. Essas situações só demonstram a linha tênue e a ineficiência de algumas mitologias que nos são inventadas desde sempre.

Seu contrapé é a lucidez. Uma energia que não pode se render às máximas proverbiais dos códigos de Exceção.
Pra ser preciso e objetivo. Outro exemplo. Numa situação mais recente, tentaram me assaltar na Praia do Futuro. O sujeito puxou uma faca. Eu só ouvi o estampido do revólver atrás de mim. Algum policial à paisana sacou um revólver e apontou em direção ao agressor. Corri. Não vou mentir. Ficar pra quê? Nessa oportunidade, não sei bem o que aconteceu com quem tentou me assaltar. Entrei no primeiro lugar seguro que encontrei. Nem por isso, defendo a " Redução". Sei que a bala não o matou. Se o tivesse feito, teria que - infelizmente - depor contra o meu " defensor". Não sei bem explicar o motivo, mas sinto que nesse caso: a vontade de acertar o jovem talvez fosse concorrente e até maior do que a de me ajudar. Uma suspeição até ingrata. Alguém pode até sofismar: - "Esse segurança deveria ter deixado o Felipe ver o que era bom pra tosse, assim ele não estava postando isso agora. Cara mais ingrato, seria capaz até de depor contra quem o ajudou ".
O que essa percepção oculta, é uma realidade cruel. As ruas estão virando " jogos virtuais e reais de guerra". Como disse: a vontade e o desejo de descarregar a arma num alvo móvel talvez fosse mais desejada e forte do que a crença em ressocializar aquele potencial e "delinquente" infrator. Ou seja, bandido bom é bandido morto. Algo do tipo. Uma pena. Contudo, uma vida não é menor do que um assalto. Não pode ser. E olha que a vida ali a ser a-balada, poderia ter sido a minha.

E a criança no restaurante? Essa nem direito à existência parece ter. Um " Homo Sacer" Agambiano. Uma vida nua, na base de um Estado e um Mercado da Exceção. Vidas que não valem a pena ser vividas. Consideradas abaixo da zona ontológica da dignidade. Quantos esparros, uma criança daquela não ouve. Toda madrugada. Todo dia. Toda tarde. Toda Noite.
No Paraná, como expunha à pouco, vivi uma experiência " profissional" onde os relatos dos " jovens em conflito com a lei" faziam parte da história de vida de meninos e adolescente de rua. Esses relatos passaram a fazer parte do meu cotidiano. Foram antropofagizados pelos anos de Praia de Iracema. E assim foi durante alguns bons meses na minha vida. Aí as fronteiras entre a minha vida e o profissional já haviam sido devidamente sepultadas. Quem viveu batida policial feita de madrugada e rebelião de menor em reformatório, sabe bem o que eu estou falando.

Cruzando o ocorrido na Praia do Futuro e no Cumbuco tudo veio à tona. É toda uma violência policial, administrativa, burocrática e civil institucionalizada, em ambos os casos, que está não somente simbolizada. Está escancarada e necrosada. Um modo de vida insustentável. Impraticável. Na Praia do Futuro: a legitimidade com a qual um jovem de periferia foi alvejado por um tiro após ser visto tentando realizar um assalto. No Cumbuco: o grito do coreano, a sua reprodução pelo trabalhador, no caso, o garçon - e a anuência da mesa. Do Paraná, a lembrança de todas as violentas batidas policiais presenciadas em Londrina aos relatos de incêndios nos reformatórios presenciados nas rebeliões dos "menores" . Uma palavra: Capitalismo e Esquizofrenia. E, diante de todas as situações colocadas; ressalvo, digo e repito: nada justifica destratar uma criança e um adolescente, nada.
Por isso, hoje - no Cumbuco, eu falei: " Mas é uma criança, vocês não podem falar desse jeito com ela".

Por isso, tenho a responsabilidade de relatar o que aconteceu.
Aprendi o mais chulo do Francês e do Italiano discutindo com verdadeiros canalhas na Praia de Iracema, bairro onde morei boa parte da minha vida até aqui. Nossa herança lusitana e ibérica também não deixa a desejar. Nossa afinidade muitas vezes só está estampada nas versões oficiais de alguns livros de História, e nalguns clássicos conservadores do pensamento social brasileiro. Portugueses e Espanhóis dão muito trabalho por aqui. Quem mora nos condomínios da PI onde, ou próximo de onde eles se hospedam, já ouviu, certamente, muitos gritos madrugada afora qualquer que fosse o dia da semana. Nossa proximidade geográfica nem sempre ajuda também: argentinos, chilenos, venezuelanos - quando tão com a macaca, dão também um bom fuá.

Com a globalização, a coisa toda se intensificou naquela PI dos anos 90 e 2000. Da vinda do Orson Welles durante a Segunda Grande Guerra Mundial pra cá, a agitação intercontinental não tomou conhecimento dessas delegacias turísticas. Dependendo do tipo de atividade e do período de férias - isso varia de país para país: norte-americanos, japoneses, belgas, poloneses, russos e, claro, suíços, foram pra cima. É só acompanhar o litoral da Costa Leste e da Costa Oeste do Ceará, praia a praia, do restaurante à pousada, para confirmar o que estou postando. Uma nítida e ostensiva presença estrangeira.
Em Jericoacoara, certa vez, acordei aos gritos de um italiano. Ele queria comprar a pousada de um senhora à força. A sorte dele é que eu estava lá. E não os filhos dela. Se eles estivessem lá, creio que aquela algazarrava teria acabado muito mal. Ela me perguntou o que eu achava daquela " proposta". Eu disse " Se ele já grita assim com a senhora agora, imagine depois." Ela me deu carta branca pra negociar. Ele queria comprá-la por 250 mil dólares. Respondi que por "Um Milhão de dólares" ele poderia ser, no máximo, um acionista minoritário. Saiu bufando. Sabia que eu tinha razão.

Esses cabras contam com todo um imaginário subterrâneo e institucionalizado. Moralismos à parte, consideram ser essa cidade, a Cidadela de Fortaleza, um verdadeiro cabaré. Um antro. Um puteiro geopoliticamente atrasado, bagunçado, desorganizado e subdesenvolvido. Uma palhaçada sem eira e nem beira. Tudo isso regrado às normas mais machistas e autoritárias que uma promiscuidade pode aquinhoar. Acham que a Colônia, o Império e a República só serviram pra gente aprender com eles, a melhor e mais profissional maneira de aromatizar e construir melhor um lugar pra eles se divertirem. Já ouvi de vários deles, em calorosas e medonhas discussões - geralmente por presenciar um destrato com uma criança ou uma adolescente - o que não admito e nem suporto -" O que atrapalha esse lugar, são vocês".

Quando as pessoas dizem que estrangeiros gostam de brasileiros, esquecem de dizer que alguns deles adoram sim; mas o que eles adoram é principalmente, o PÃO e o CIRCO que possa ser proporcionado à sua frivolidade.
Arrogantes, cínicos e violentos. Meu vizinho de rua, por exemplo, tinha 80 anos e casou com uma menina de 15. Todo mundo achava lindo. O dinheiro dele, é claro. Tinha uma pousada razoavelmente chique numa ruazinha interna da PI. Todos os amiguinhos dele partilhavam dessa adoração infanto-juvenil. O resto desse festim diabólico deixo pra vocês imaginarem.
O problema evidentemente não é só representado pela presença de estrangeiros. Trocando o Capital de mãos - do internacional para o nacional - creio que, estruturalmente falando, pouco iria mudar. Uma espécie de seis por meia dúzia, como se dizia numa antiga gíria das ruas.
Os estrangeiros também não correm seus riscos? Os brasileiros nunca cometem seus deslizes? Um lado é sempre bom, e outro sempre mau? Turistas não são enganados? Quiçá golpeados? Claro que sim. Mas aqui não é como qualquer outro lugar do mundo. Até novela global já mostrou como são tratadas brasileiras no ''mercado do sexo" países afora. Imagine-se que aqui sua proteção seria maior. Ledo engano. Nesse sentido, a boemia é tão verborrágica quanto democrática: trafica e distribui sopapos levianos de todos os lados. Por exemplo, algumas turistas já foram assassinadas por " desconhecidos" nalgumas praias desse Siará.

A indignação não pode ser seletiva. Mas é preciso dizer. A corda não arrebenta da mesma forma para todos os lados. Nem indo. Nem voltando. Quando um turista é assassinado, violentado, assaltado ou algo parecido por essas bandas - logo vira manchete de jornal e a notícia se espalha. A atividade sismológica da redes sociais dispensam comentários. Pelo menos, aquelas notícias que podem ser alardeadas. Há muitas que não o são. Não devem chamar atenção. Não se admite que os negócios sejam atrapalhados.
Pois é. E quando uma criança "local" é assassinada ou uma mulher " nativa" é estuprada, como ficamos sabendo? É na brutal indiferença sobre a desigualdade desse tratamento que se pode notar como funciona um " efeito colateral" nessa estrutura. Sendo todas essas situações lastimáveis, cabe ponderar: de um lado a indignidade espetacular das manchetes sensacionalistas. Do outro, o silêncio das estatísticas e dos boletins de ocorrência. Muitos casos de violência acometidas contra crianças e adolescentes são arquivados antes mesmo de serem investigados.

Eu, pessoalmente, já tive que reconhecer um cadáver de amigo brutalmente assassinado na própria PI. Brasileiros assassinados por brasileiros, estrangeiros por estrangeiros, brasileiros por estrangeiros, estrangeiros por brasileiros. A violência é múltipla. Vaza por todos os lados e ângulos. Mas, como digitei no parágrafo anterior: os pesos e os vetores são desiguais. Mais desiguais do que apenas diferentes. Eles possuem nacionalidade, faixa etária, gênero, raça, nível de instrução, classe social e poder aquisitivo
E, posso lhes assegurar: a imprensa e a polícia não noticia boa parte do que ocorre. Isso poderia, volto a afirmar:" atrapalhar" os negócios. Do pouco que é "coberto" e " investigado", muito é espetacularizado e banalizado. Isso só piora a situação.
Salvo exceções. Por exemplo: holandeses, finlandeses, suecos, noruegueses, dinamarqueses; até alemães - são, por vezes, cordatos, não têm culpa daqui ser um Estado "pobre". Um lugar em que qualquer idiota com dinheiro pode ser catapultado à uma condição magnânima.

A cada palavrão transatlântico proferido por um " turista" contra um taxista ou uma prostituta; a cada grosseiro "não!" ( só inteligível pela rispidez) ecoando e reverberando para cada pedido de dinheiro realizado por uma criança; para cada careta e tiração de sarro diante de uma senhora carente que solicita seja lá o que for ( ainda que ela lhes ofereça seja uma flor, seja uma rosa); a cada nota tirada da carteira para pagar um cigarro, para cada reclamação do preço de uma caipirinha ou para cada estardalhaço realizado ao efetuar o pagamento de uma conta num bar ou , num restaurante; para cada crítica à desqualificação profissional de um serviço de  locação e aluguel de carros para passeio; as críticas destemperadas aos maus serviços de um cabeleireiro, de um pizzaiolo, de um pedreiro, de um eletricista, de um bombeiro hidráulico; a reprimenda ao manobrista, ao agente de viagens,  ao agente imobiliário; a cada soberba diante de um garçom; a cada grosseria diante de um segurança de boate ou banco; a cada comentário desprezível acerca de todo e qualquer ambulante; a cada sarcasmo, asco e repugnância abertamente declarado diante de um mendigo; a cada chiste com um porteiro de apartamento residencial, pousada ou hotel; a cada espaço arquitetônico adaptado aos padrões estéticos europeus; as conversas, as abordagens e os flertes nos cafés, nas tabacarias, nas mercearias, nas lojinhas; as filas nos supermercados; toda uma rede turística, imobiliária e financeira sobrevive, defende, se rende,  sorri, agradece, abençoa, se agacha e se humilha graças a essa geopolítica injustiça social, política e econômica atualizada no sistema capitalista contemporâneo: hotéis, pousadas, táxis, aeroportos, rodoviárias, bares, restaurantes; compra, venda e aluguel de imóveis e móveis, e mais uma lista infinita de variedades facilmente "deportáveis".

A rede também tem as suas artimanhas. As vezes quem grita, pode sair com um ouvido môco. Um troco pode dar errado. Uma boa desinformação acerca de um destino notívago é sempre possível no caso de um espontâneo caso de antipatia declarada. A simpatia pode ser dosada a curto, médio e longo prazo. No entanto, contra o Capital, isso representa apenas pequenas doses de esperteza. São espasmos diante de algo tão ostensivo. Serve para deixar todo mundo alerta e inquieto? Trata-se de um jogo contínuo? Talvez. Com uma boa dose de otimismo e uma teoria bem folclórica e aventureira, talvez sim. Um sinal pode congestionar no verde, no amarelo ou no vermelho. Mas o semáforo e todo o aparato da " engenharia de trânsito" invariavelmente tendem às negociações Capitais e monetárias. Nos momentos mais delicados, sensíveis difíceis e explosivos é sempre assim. Incluindo aí a prática de suborno e chantagem.

Essa rede precisa manter a outra rede, a da pobreza e a da mendicância, menos profissional, sob controle. Todo o aparato estatal, município e estado, sindicatos profissionais e entidades de classe entram aí pra formalizar e institucionalizar essas relações. Apenas isso. O dinheiro faz com que todos se monitorem sabendo que são todos - dignamente - descartáveis. Alguém sagaz, já percebeu: a questão não é apenas territorial. As redes dialogam com essa dinâmica de forma intensa e explosiva.

Depois do grito de hoje. E, para o meu assombro, depois da conivência de alguns locais com tamanha violência simbólica, resolvi desabafar. É que lá no Cumbuco, meninos e meninas de rua já pedem dinheiro com bilhetes bilíngue: em português e em coreano.Pelo visto desses passaportes, nossa indignação precisará ser mundializada.

1 comentários:

Unknown disse...

Felipe Franklin Neto, cada vez mais, revela-se um ensaísta de potência logarítma e infinitesimal. Os fluxos migratórios [como fenômeno social, histórico e educativo] encadeiam uma série de sinergias, algumas aqui bem assinaladas neste sublime ensaio. A sua indignação é a nossa e parafraseando Eduardo Galeano: nós dizemos não.

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